29 de setembro de 2018

K0 - As últimas testemunhas

Este é o primeiro de uma série de posts sem deadline dedicados a descrever desordenadamente minhas impressões de leituras ligadas a um ser muito especial, K. Enquanto meu coração continuar batendo, K. passeará pelas minhas artérias e veias como um Dennis Quaid miniaturizado, pegando carona nos meus glóbulos vermelhos, às vezes levando oxigênio, noutras trazendo gás carbônico.

As últimas testemunhas: crianças na segunda guerra mundial é o último livro publicado pela Companhia das Letras de autoria da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, cujo trabalho é ao mesmo tempo modesto e brilhante: coletar, organizar e apresentar testemunhos de acontecimentos-chave da história soviética. Esse último livro reúne, claro, o registro de depoimentos daqueles que ainda eram pequenos quando o mundo mergulhou profundamente no breu da segunda guerra, que os russos chamam de grande guerra patriótica. São mais de 250 páginas de inferno.

É um inferno que não se pode imaginar mais cruel: a carnificina observada e experimentada por olhos inocentes. É uma combinação quase poética e inteiramente crua de crianças brincando de guerrinha entre corpos de soldados congelados e estraçalhados. Crianças lembrando de seus brinquedos e da execução sumária de seus pais. Crianças ao mesmo tempo fascinadas e aterrorizadas com os aviões.

São crianças, e sabem que as casas incendiadas queimam com as famílias lá dentro. Com os amiguinhos, com os titios, com os irmãozinhos, lá dentro. Meninos e meninas pequenos que vêem o pai agonizando e a mãe sendo enterrada, chorando diante da cova da mãe, não entendendo porque a mãe morreu se tinha apenas um buraquinho de bala no rosto. São pessoas de seis ou sete anos de idade vendo uma jovem morta com uma criança de colo que ainda mama em seu peito. São crianças que não apenas sentem mas entendem a fome. E que sabem - ah, que triste - sabem o que estão fazendo quando atraem para casa um carinhoso cachorrinho de rua, pois aquele é o único alimento que encontraram em muito, muito tempo. "Perdão, querido cachorro... perdão".

Svetlana quase nunca interfere, deixando toda a eloquência para a memória viva dos entrevistados. Mesmo quando não muito detalhadas e com evidentes lacunas, as ruminações mnemônicas das testemunhas são tremendamente eloquentes. "A guerra é meu livro de história", diz um dos então meninos. "Minha solidão... Perdi a época da infância, ela fugiu da minha vida. Sou uma pessoa sem infância, em vez de infância tenho a guerra. ... Na vida, a única coisa que depois me abalou desse jeito foi o amor. Quando me apaixonei... Conheci o amor..." Com o perdão do lugar-comum, é inevitável a sensação de que essas pessoas estão em estado permanente de guerra consigo mesmas - em guerra com suas memórias, com seu passado longínquo. Algumas vezes a dor da memória é verbalizada, explícita. Mas em todos os casos ela se faz presente. A dor da memória nunca vai embora. Nunca vai embora.

Às vezes o livro abre frestas nas opressivas paredes do horror e o amor, a fraternidade e a colaboração entre os seres humanos banham os testemunhos com uma luz benevolente: "o que ficou comigo da guerra? Não entendo o que são pessoas desconhecidas, porque eu e meu irmão crescemos entre pessoas desconhecidas. Pessoas desconhecidas nos salvaram. Mas como elas seriam desconhecidas para mim? Todas as pessoas estão ligadas. Vivo com esse sentimento, mesmo que muitas vezes me decepcione. A vida em tempo de paz é diferente..."

"Todas as pessoas estão ligadas". Nenhum ser humano precisa ser um completo desconhecido que machuca o outro, que mata e oblitera o outro. Esse livro lindo e profundamente triste sugere que nem mesmo a perda da inocência pelo choque da violência torna inevitáveis o esquecimento da decência e a necessidade da destruição. Enquanto estivermos sobre essa terra, nós, humanos, podemos sempre escolher não violentar o outro. Podemos sempre enxergar no outro a mesma carne que nos constitui, e assim o fazendo, respeitar a sua integridade. De outra forma, o caos reina e a guerra vive - mesmo que só na paisagem interna de quem um dia os experimentou.

19 de setembro de 2018

Sinto-me

Obliterado.

?

Como reconstruir uma vida inteira aos 38 anos de idade?

Como começar a construir uma vida beirando os 40?

Eu nem mesmo sei quem sou e o que quero.

No que sou bom?

No que sou fraco?

O que posso dar ao mundo?

O que quero dar ao mundo?

O que posso tirar dele? O que devo?

O que devo?


8 de setembro de 2018

Mal-estar

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.

Freud, no começo de O Mal-Estar na Civilização.

De onde você vem?