26 de novembro de 2008

Fascista? Eu?

Num dos seus Cinco Escritos Morais, Umberto Eco se propõe a analisar o problema do fascismo tal como ele poderia se apresentar de maneira camuflada nos dias de hoje ou, para dizer as palavras dele, do problema de se identificar um "fascismo eterno". Mais adiante, transcrevo um trecho interessante deste ótimo ensaio e faço uma pergunta que mira um problema aparentemente distante. Mas antes, um esclarecimento.

O nazismo, diz Eco, assim como o stalinismo, tem um núcleo filosófico e ideológico bem delineado, um programa político claramente definido. O fascismo, surgido na Itália de Mussolini, ao contrário, é uma salada mal e porcamente alicerçada na retórica inflamada de seu líder. Apesar dessas diferenças, o termo se tornou moeda corrente para designar qualquer tipo de totalitarismo (categoria por si só problemática e já largamente questionada). Isso é um problema óbvio, na medida em que o fascismo é um fenômeno incoerente e desconjuntado. Umberto Eco encara o abacaxi, nesse texto, delineando algumas características que denunciariam a presença do tal de "fascismo eterno" ou "Ur-Fascismo", como ele o chama. Ou seja: tudo aquilo que pra nós, hoje, cheira a fascismo, mesmo que não se refira precisamente ao fenômeno histórico circunscrito à Itália dos anos 30.

Eis o trecho:

A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho do que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra-reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico.

Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgências pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.

Essa nova cultura tinha que ser sincretista. 'Sincretismo' não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.

Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas, ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana, Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sion, a alquimia com o Sacro Império Romano. [...]

Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação "New Age", irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma do Ur-Fascismo.


Vivemos num tempo em que expressões como procurar ou descobrir a verdade estão completamente fora de moda. A mera menção a isso é capaz de arrepiar os intelectuais mais sensíveis, desencadear reações de desdém a algo visto como ultrapassado, até mesmo perigoso. Não é raro nos depararmos a denominações como o "fascismo da ciência". Vivemos o kitsch da multiplicidade de interpretações, igualmente válidas de acordo com os sistemas de representações dos quais emanam, e dificilmente postas em situação de embate, em que algumas inevitavelmente se sairiam melhores do que outras.

A pergunta é: qual é a diferença prática entre "uma verdade que já foi anunciada de uma vez por todas" e que "só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem" e a afirmação da completa inexistência da verdade acompanhada da desistência em procurá-la?

E só para provocar: de que lado está o fascismo?

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