Uma coisa recorrente em obras de divulgadores da ciência como Richard Dawkins e Carl Sagan é o ataque à pseudociência. Tentam alertar para um perigo das sociedades modernas: aquilo que parece ser ciência pode ser uma impostura. Em linguagem clara: você pode estar levando um Porsche com motor de Fusca.
Pseudociência é todo discurso, saber ou crença, que se disfarça de ciência para conseguir credibilidade (fiquemos com essa definição, por enquanto). Pelo menos é nisso que quero acreditar: a ciência ainda tem muita credibilidade na nossa sociedade. Quantos anúncios não vêm acompanhados da chancela de "cientificamente comprovado" ou similares para atestar que seus produtos são confiáveis? Por quê os autores de livros de auto-ajuda e boçalidades semelhantes têm a necessidade de acompanhar seus nomes dos títulos de "MD" ou "PhD"? A intenção é clara. A ciência se tornou, há muito, base para decisões públicas e ainda é considerada, em inúmeras direções, nossa maior fonte de conhecimento seguro sobre o mundo. Sua roupa, pelo menos, ainda vende. E muito.
No post anterior eu indiquei, via De Rerum Natura, um artigo sobre ciência e pseudociência que apareceu há pouco na SEP. Sven Ove Hansson, o autor, prudentemente, tratou de apenas colocar o problema como algo a ser resolvido. O que já era de se esperar. Isso é coisa pra se tentar resolver em teses ou em tratados, e não num artigo de enciclopédia. Não deixa de ser interessante, mesmo assim, então vamos rapidamente a ele.
Hansson coloca uma questão que inevitavelmente se desdobra num problema muito maior: como estabelecer critérios para identificar a pseudociência? O problema maior é claro: quais, então, os critérios para demarcar a própria ciência? O artigo se desenvolve mais em torno disso, da demarcação e identificação do que é científico, e como fica bastante claro em seu desfecho, é paradoxal que haja tamanho consenso quando o assunto é meramente identificar os campos que devem ser considerados ciência, e ao mesmo tempo tanta dificuldade para encontrar critérios gerais que demarquem com clareza o que é ciência e o que não o é.
Da mesma forma, é bastante comum encontrarmos convergência em opiniões na comunidade científica - e não somente dentro dela - que classificam o criacionismo, a astrologia e a homeopatia, por exemplo, como pseudociências. A divergência está no porquê disso tudo ser pseudociência. As possíveis respostas esbarram primeiro no problema muito comum de se misturar pseudociência com anticiência, e mesmo pseudociência com todos os discursos alheios ou estranhos ao discurso científico. Basicamente, por pseudociência entende-se um saber ou crença que, não sendo científico, passa por ciência, veste sua roupa e emula suas maneiras na tentativa de criar uma impressão de ser científico. Apesar de muito útil, este é um critério problemático: a homeopatia oscila entre colocar-se como anticiência e como ciência, como afirma Hansson. O mesmo ocorre com a astrologia, atualmente, penso, com maior tendência a se considerar realmente não-ciência ou anticiência. A questão é que não há um corpus pseudocientífico em oposição ao corpus científico mais ou menos definido. E, pior, em alguns casos aquilo que pode ser identificado como ciência mal-feita (ou seja, experimentos mal conduzidos, teorias logicamente mal elaboradas, etc.) tende, em alguns casos, a ser confundido com pseudociência. A única forma de separar o joio do trigo, neste caso, seria saber se, por trás de conclusões estranhas à ciência originadas de incompetência ou distorsões propositais, há uma doutrina não-científica mais ou menos coerente. Dá pra ver que é muito pano pra manga, óbvio.
O pepino todo está na própria definição de ciência. Hansson faz um breve catálogo das principais vertentes na filosofia da ciência que arriscaram propor critérios gerais para a definição de ciência. Os positivistas do Círculo de Viena e a ênfase na possibilidade de se verificar uma proposição empiricamente; Karl Popper e a idéia de que uma teoria só é científica se abre a possibilidades de ser refutada por observações ou experiências que fiquem nas raias do concebível; Thomas Kuhn e a imagem da ciência normal, em que a prática científica mais comum é identificada com a resolução de problemas dados por um paradigma teórico que só de vez em quando é desafiado pelas anomalias que surgem nas pesquisas; Imre Lakatos e o critério de progressividade, em que estamos diante de ciência quando um programa de pesquisa cria novas teorias que, progressivamente, substituem as velhas pela capacidade de previsão e maior embasamento empírico; e Robert Merton e seu ethos científico, com imperativos institucionais como o universalismo, o ceticismo organizado, o senso de comunidade e o desinteresse pessoal. Não há consenso entre estas diferentes demarcações. Quando muito, há uma certa convergência em certas questões específicas. Isso pra não dizer que estamos falando só de gente que, se não eram epistemólogos de ofício, encararam a epistemologia de maneira propositiva, digamos. Pois eu não queria nem ver o fuzuê se no meio desse balaio todo Hansson tivesse tentado incluir as abordagens destruidoras das linhas mais relativistas da história da ciência.
Só pra dar um gostinho do incêndio: o item 3.6, ao qual Hansson não dá lá muita atenção, chama-se a time-bound demarcation. "The demarcation of science cannot be timeless, for the simple reason that science itself is not timeless", diz Hansson. "The mutability of science", continua, "is one of the factors that renders the demarcation between science and pseudoscience difficult". É aí que os historiadores têm uma chance de enriquecer o debate. A conclusão é, hoje, óbvia demais para ser usada como objetivo da pesquisa histórica sobre ciência (e pseudociência). "A ciência não está fora do tempo": isso é um ponto de partida, não de chegada. Mas, aproveitando a deixa, isso é outra história, pra outro post.
13 comentários:
Esta mulher te ama!!!
Parabéns pela discussão.
Ontem redigi um longo post sobre minha experiência pessoal com a hipótese e a experimentação. Não sei se me atrapalhei e não enviei, ou, se você resolveu não publicar. Se puder me responda.Bjs
Você censurou o meu post de omtem ou eu não mandei? Bjs
Vixe, Gina, não chegou nada, nem censurei nada!!!
Caceta, agora fiquei curioso sobre seu texto... manda de novo.
Danilo, o texto do post de ontem era grande. Será que foi por isto que não chegou? Eu salvei o texto, por ser tão longo no meu notebook (e hoje eu o deixei cair e não consigo mais ligá-lo). O que eu contava era sôbre a minha experiência com a importância da experimentação: hipotetizar e experimentar. Pode-se propor o que se quizer mas o bonito, na Ciência, é que tem de pagar pra ver.
Há uns dez anos atrás, foi publicado este artigo:
"Allergy Clin Immunol. 1995 May;95(5 Pt 1):933-6 Anaphylaxis to carrageenan: a pseudo-latex allergy.Tarlo SM, Dolovich J, Listgarten C.Toronto Hospital, Western Division, Ontario, Canada.
BACKGROUND: Anaphylactic reactions during a barium enema have been attributed to allergy to latex on the barium enema device. The observation of anaphylaxis during barium enema without latex exposure or latex allergy led to the performance of an allergy skin test to the barium enema solution. METHODS: Individual components of the barium enema solution were obtained for double-blind skin testing. A RAST to identify specific IgE antibodies to the skin test active agent was established. RESULTS: Carrageenan, a component of the barium enema solution, produced positive reactions to allergy skin test and RAST. Gastrointestinal symptoms for which the patient was being investigated by the barium enema subsequently disappeared with a diet free of carrageenan. CONCLUSIONS: Carrageenan is a previously unreported cause of anaphylaxis during barium enema. It is an allergen widely distributed in common foods and potentially could account for some symptoms related to milk products or baby formula."
Eu sabia que a carragenina injetada é um potente pró-inflamatório. Sabe-se também que é bastante usada na industria alimentícia. Comecei a questionar se muitas pessoas não teriam os seus sintomas gastro-intestinais relacionados ao uso de creme de leite, achocolatados, embutidos, etc onde a industria alimentar usa a carragenina para reter a hidratação, e conseqüente peso, do produto. Encontrei artigos da década de 70 descrevendo dieta com o uso de carragenina degradada como protocolo indutor de doenças inflamatórias intestinais em animais de laboratório.
Watt J, Marcus R.Ulceration of the colon in guinea-pigs fed carrageenin.Proc Nutr Soc. 1970 May;29(1):Suppl:4A. /Carrageenan and the colon.Food Cosmet Toxicol. 1970 Feb;8(1):75-6. PMID: 5435756 /Watt J, Marcus R.Ulcerative colitis in rabbits fed with degraded carrageenan.J Pathol. 1970 Feb;100(2):Piv. PMID: 5420770
Minha imaginação voou. Fiz o projeto para avaliar a sensibilidade alérgica de pessoas portadoras de doenças inflamatórias intestinais com diagnóstico firmado, controles e portadores de sintomas gastro-intestinais crônicos sem diagnóstico definido. Começou a batalha para conseguir a carragenina na forma usada para agregação aos alimentos na indústria. Quanto mais eu estudava, mais começava a temer o possível tamanho do problema e a guerra que viria depois (com a industria). Consegui o material. Testei 300 pessoas ao longo de vários anos e não encontrei qualquer indício de relação da sensibilidade alérgica à carragenina e sintomas gastrointestinais. Pois é, e se eu não tivesse partido para a experimentação? Possivelmente teria, ao longo destes anos, me enganado e assustado pessoas sem fundamentação alguma.
Era disto que eu lhe falava no post de ontem.Como pagar para ver é necessário quando se hipotetiza algo.
Já muito me irritei muito no passado com a leviandade de "teorias" DEFINITIVAS feitas pela junção de rebimbocas com parafusetas diferentes, sem experimentação. Não me irrito mais: é só uma questão de ignorância e isto não se resolve com argumentação: só com o conhecimento. Como são muitos os ignorantes, muito pouco o estudo e muito leviana a sociedade em geral, o melhor é não nos irritarmos mesmo porque a irritação e seus hormonios colabam sinapses e isto é irremediável para cada um de nós.Bjs.
Gina, é uma pena que seu texto original não tenha chegado, mas deu pra entender perfeitamente o que você disse. Aliás, nada como alguém de dentro pra dar um panorama mais preciso de como as coisas funcionam. Valeu demais!!
Encaixando a sua experiência da carragenina com o assunto do post, vamos imaginar que você praticasse "má ciência" e os resultados de sua pesquisa fossem contrários à carragenina e, portanto, à indústria. Se você tivesse chegado a esse resultado errado por incompetência, isso seria apenas "má ciência". Mas se você insistisse em resultados errôneos por algum motivo obscuro (p. ex. querer denegrir a imagem da indústria de alimentos e diminuir suas vendas, ou mesmo pertencer à religião dos anti-carrageníneos) então não haveria "má ciência", mas pseudociência. Só que isso é muito problemático, pois esbarra no julgamento das intenções do cientista.
Veja que isso lida com uma reflexão tanto sobre o que é ciência, quanto sobre o que deveria ser ciência. E é inevitável que, para isso, tenhamos que recorrer a uma certa idealização, coisa que os historiadores abominam. Toda conceituação que comece com "ciência é..." tem uma forte carga de idealização, mas não tem outro jeito. Melhor do que nada.
Se entendi, moralmente (não sei se cabe o julgamento) pseudo-ciência é pior do que má-ciência.
Se entendi, moralmente (não sei se cabe o julgamento) pseudo-ciência é pior do que má-ciência.
Viu no que dá postar gripada, com a cabeça cheia de anti-histamícos? Um dia não manda o post, no outro manda duas vezes, não se despede, posta de novo para se desculpar ... Bjs a voces dois
"Se entendi, moralmente (não sei se cabe o julgamento) pseudo-ciência é pior do que má-ciência."
Se passei isso, sorry, me expressei mal. O que queria dizer é que, em certos casos, pra se distinguir má ciência de pseudociência é necessário ver o que está por trás da prática do cientista, por exemplo se as conclusões sistematicamente errôneas são fruto de um discurso não-científico mais ou menos coerente que ele segue como doutrina. Ou seja, demarcar isso aí é um problema e tanto (como o próprio artigo da SEP mostra).
Moralmente, sei lá, acho que má ciência é pior do que pseudociência. Mesmo porque tem uma pancada de gente boa que dedica sinceramente as forças de suas vidas a pseudociências...
"Dan, no caso que você citou acima, acredito que esteja muito mais para um cientista mal intencionado do que para a pseudociência. Ele detêm a informação mas ludibria em benefício próprio, ou melhor, manipula em seu benefício.
Acho que está mais para "má ciência".
Sim, Van, no caso que eu coloquei aí está mais pra fraude, má ciência, etc. Como eu falei lá em cima, a pseudociência estaria se a pessoa ajusta os resultados de sua pesquisa com alguma doutrina não-científica mais ou menos coerente que ela segue. É uma noção complicada, e distinguir as duas coisas é um problema sério.
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