12 de maio de 2009

Lévi-Strauss aos 101


Acabou de sair a edição de maio da revista ComCiência, do Labjor/Unicamp e SBPC. Esse mês o tema é a vida e a obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o pai do estruturalismo que, hoje, dizem alguns, está fora de moda.
Minha matéria é um esboço de resposta à pergunta que fiz na reunião de pauta: qual a consequência epistemológica da noção de estrutura de Lévi-Strauss para as ciências?
Em poucas linhas, cheguei à seguinte conclusão: no fundo, Lévi-Strauss rejeita a possibilidade de avanço do conhecimento, ideia-chave da ciência moderna. Se tanto a ciência quanto o pensamento ameríndio se baseiam sobre as mesmas estruturas universais da mente humana, então as descobertas científicas nada mais são do que flutuações de uma equação, a mente, reflexo da natureza humana, do nosso caráter animal e orgânico. A humanidade compartilha uma razão, capaz de conhecer o mundo, muito mais profunda do que a razão iluminista. É uma ideia muito bonita, escrupulosamente construída e examinada, da qual discordo humildemente.
Lévi-Strauss não é o responsável, mas deu origem ao pós-estruturalismo, que está dentro do conceito vago de pós-modernismo. O relativismo radical bebe dessa fonte, mas às vezes disfarça.

Abaixo, deixo um trecho do meu texto, que explica isso tudo um pouco melhor:

A valorização do “científico”, por Lévi-Strauss, é ambígua, ou pelo menos abre um leque interpretativo bastante amplo sobre o valor da ciência. Por um lado, sua própria abordagem, em si mesma, pressupõe um forte modelo científico. José Carlos Reis afirma que “o estruturalismo impõe às ciências humanas a hegemonia das matemáticas e da lógica das ciências naturais”, tese que coincide com a de Mauro Almeida, para quem “o estruturalismo de Lévi-Strauss contribuiu para trazer às ciências humanas de maneira mais sistemática e autoconsciente o uso de modelos para representar fenômenos. O que Lévi-Strauss ensinou é que discernimos regularidades, leis, padrões, enfim ‘estruturas’ construindo tais modelos. Esse modo de fazer ciência era bem conhecido na física, e mesmo na biologia”. Por outro lado, o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss dá uma tremenda ferroada na ciência. Um dos pressupostos fundamentais da ciência moderna é o da possibilidade do avanço do saber. Desde seus pais fundadores do século XVII, a ciência moderna joga com a necessidade de avançar o conhecimento humano progressivamente além, mais profundamente, mais detalhadamente, com maior potencial de alteração da realidade e de controle da natureza para a felicidade humana. Por isso, de maneira geral, a ciência lida com a ideia de mudança histórica, de superação e abandono de teorias e modelos por outros que expliquem melhor e mais detalhadamente a realidade, num processo impulsionado pelos seres humanos como agentes da história. Lévi-Strauss faz um ataque claro à história e ao homem do sonho iluminista como o agente da mudança social e da sua própria liberdade. Como afirma Reis, do ponto de vista de Lévi-Strauss, “o intelecto humano é permanente e se impõe sobre a mudança histórica. As normas sociais têm uma estrutura lógica, que as mudanças históricas não abolem. A busca da inteligibilidade parte da história para aboli-la em ordens naturais permanentes, profundas. O espírito humano é sempre idêntico a si mesmo e predomina sobre o social e o histórico. Por isso, a antropologia não diferencia o ‘selvagem’ e o ‘civilizado’, pois têm a mesma estrutura lógico-intelectual, que torna irrelevante a sua aparente diferença histórica”. A conclusão seria, portanto, que a ciência moderna, fenômeno histórico característico a um determinado tempo e espaço, não difere fundamentalmente de outros saberes, mitológicos ou mágicos, todos estruturados de acordo com uma lógica universal do intelecto humano. As conquistas científicas do nosso tempo não significariam, pois, conhecimento melhor ou mais profundo: não haveria avanço do saber.

O estruturalismo de Lévi-Strauss experimentou seu auge de aceitação acadêmica nos anos 1950 e 60. Nas duas décadas posteriores, as críticas à antropologia estrutural deram origem a um movimento que procurou superá-la: o pós-estruturalismo. Vagamente identificados como pós-modernos, os pensadores pós-estruturalistas, em diversas áreas, tendem a recusar justamente as mais ambiciosas ideias de Lévi-Strauss: as estruturas universais, imutáveis, do pensamento humano. Se o estruturalismo de Lévi-Strauss recusava a racionalidade iluminista para encontrar uma outra onde menos se esperava, o pós-estruturalismo recusa qualquer racionalidade que governe o mundo. Os pós-estruturalistas “não buscam mais verdades históricas nem aparentes e nem essenciais, nem manifestas e nem ocultas. Eles recusam essências originais e fundamentais que se deveria reencontrar e coincidir.”, diz José Carlos Reis. Conclusão implícita em Lévi-Strauss, a recusa do acúmulo progressivo do saber, do avanço da ciência, torna-se explícita e radical no pós-estruturalismo. Nega-se qualquer acúmulo e qualquer avanço científico gerados racionalmente pela consciência do ser humano. 

Hoje, no meio intelectual, há uma guerra aberta acerca da ciência, sobre como ela funciona, qual o valor que damos a ela, o quê lhe devemos e o quê ela nos deve. De forma simplificada, pode-se dizer que há duas grandes tendências. De um lado, pós-modernos e pós-estruturalistas se aproximam de um relativismo epistêmico radical, hostil à ciência moderna, negando mérito à racionalidade ao mesmo tempo em que anulam o ser humano como sujeito consciente de poder mudar a história. De outro, os mais diversos e díspares herdeiros do Iluminismo procuram desafiar as correntes céticas, denunciando suas conclusões relativistas como reflexos de uma opção política de aceitação e assimilação do mundo pós-1989, o de um único sistema socioeconômico – que apareceria então como estrutura naturalizada e inquestionável: daí a recusa da mudança histórica que a ciência e a racionalidade podem proporcionar.


8 de maio de 2009

Elogio da Loucura

Um carro potentíssimo no fio da navalha, o tempo todo. As pessoas assistindo ao lado da pista.

Diria Xico Sá: "Amigo, Fórmula 1 é video-game".



O rali é, realmente, a melhor definição do que Erasmo, o Tremendão de Roterdã, escreveu lá quando a modernidade nem tinha certidão de nascimento ainda.

5 de maio de 2009

A autêntica piada de mau gosto

Viram a última de Nova York? Um 747 dublê do Air Force One, o avião da presidência dos Estados Unidos, andou voando em baixa altitude, em círculos, sobre Lower Manhattan. Bem, você já adivinhou o que é que ficava exatamente na parte sul da ilha até uns 8 anos atrás, não?
"As pessoas começaram a evacuar os prédios, até os caras daquela construção na puta que pariu. Todo mundo saiu dos seus edifícios. Ninguém sabia de nada. Até que um sujeito apareceu com um megafoninho, dizendo que era um teste. As pessoas não ficaram contentes", disse o fotógrafo Edward Acker, que estava no World Financial Center 3.
A FAA (Federal Aviation Administration) acabou reconhecendo mais tarde que tudo foi parte de uma sessão de fotos (!) do Air Force One. Obama se desculpou publicamente pelo incidente, e disse que as fotos agora não virão a público.
Depois da traulitada do 9/11, os newyorkers se borram até mesmo do Air Force One. Meu amigo Enéias, o Rei dos Provérbios, diria: gato escaldado...
Agora, vamos lá. Sinceridade. Veja o vídeo e diga se você não cagaria nas calças se estivesse num desses prédios novaiorquinos e visse essa belezinha aí passando bem perto.

Quando eu for pra lá, só subo num arranha-céus com um pára-quedas nas costas.


Diálogo entre Jack, o chefe sentado de costas pra janela do 50º andar, e Jim, o estagiário cuja lição de casa ficou um lixo:

Jack: "So, that´s all you´ve got?"

Jim: "Yes. I´m sorry. I tried hard, but never got to -- OH MY GOD, THERE´S A PLANE COMING TOWARDS US"

Jack (cético): "Yeah, right..."

Jim (apontando, horrorizado): "I´m not kidding! There´s a FUCKING JUMBO JET flying very low downtown"

Jack (cínico): "C´mon, dude, could you find a better excuse to distract me from this crappy work? By the way, what an awful sense of humor"

Jim (apavorado, saindo da sala): "I´m outta here"

Jack (imitando Donald Trump): "You´re fired!"

Jack olha pra trás e vê o 747. Imediatamente pega o telefone. Liga para o seu corretor em Wall Street.

Jack: "Sell it all! Now! But buy some Halliburton stocks"

1 de maio de 2009

Ninguém é só alguém

Quando um evento impactante acontece, desses dignos do rótulo de "histórico", acho que todo mundo guarda-o de maneira que se lembra muito tempo depois exatamente o que estava fazendo, com quem interagiu, o que sentiu, etc. E sentimos a necessidade de contar para os outros exatamente essa memória. Quando ainda somos bem jovens - e vivendo como vive uma criança de classe média sortuda, com uma redoma que parece proteger sua própria vida e a de seus queridos - talvez isso se amplifique porque as tragédias que estão no cerne da nossa própria existência não parecem existir, não fazem parte da realidade. Tragédias, só com os outros. Terremoto, só em São Francisco.

Eu não entendia porque se dizia que a Fórmula 1 era um esporte perigoso. Desde que havia começado a assistir as corridas, por volta de 86, 87, nenhum piloto sequer havia morrido. Elio de Angelis morreu num teste em Paul Ricard, pela Brabham, em 86, mas era só um teste. E era só Elio de Angelis. Era assim que eu pensava. Brutal, é verdade. Era só o Elio de Angelis.

Pois bem, todo mundo sabe o que aconteceu nos treinos do GP de San Marino de 1994, que ocorria na Itália (me lembro que fiquei espantado quando soube que Imola não ficava em San Marino porra nenhuma). Roland Ratzenberger, que corria por uma equipe nanica chamada Simtek - um carro roxo lindo e lento, o que o tornava feio e desinteressante - morreu quando bateu a trezentos por hora no muro da Villeneuve. Como havia levantado tarde naquele sábado, fiquei sabendo da morte do piloto pelo meu pai, no caminho para o Supertuba, um supermercado, que ficava a duas quadras. Mas o Senna conseguiu a pole? Sim, Senna na pole. Ah, então, tudo bem.

Encontrei minha vó e minha tia no Supertuba, que quando foram informadas da morte do ilustre desconhecido fizeram uma cara de tristeza e choque - afinal era um jovem que morreu praticando esporte, uma morte trágica. Eu me lembro de ter tentado simular a mesma tristeza. É uma convenção social que eu entendia muito bem, expressar a tristeza diante da morte, especialmente uma morte trágica. Fique triste, Danilo, um piloto morreu, pensava. E o Senna? Ficou com a pole, Vó. Era só o Ratzenberger, afinal.

Terremoto, só em São Francisco. Tragédias, só ali, não aqui. Com os outros, bem longe daqui.

Levantei cedo no domingo, como sempre fazia, como milhões de outros fiéis a postos para o culto da grande religião televisiva dos automóveis que ficam correndo em voltas seguidas pra não sair do lugar. Quando o Senna bateu - "Senna bateu forte!", berrou o Galvão - fui tomado de uma tristeza abissal. Aquela Williams desmantelando ao vivo, quase voltando pra pista pra descansar finalmente na área de escape, significava uma única coisa: Schumacher vai vencer de novo, Senna sem pontuar de novo, 30 a 0. E agora? Como é que Senna vai ser campeão no ano em que era pra ganhar todas as corridas? Duvido que algum sennista fanático tenha pensado diferente. Acidentes mais feios, o próprio Ayrton já tinha sofrido. Se você torcia pelo Senna como eu, você imediatamente pensou: fodeu, já era, acabou. 30 a 0 é a morte. 30 a 0 é adeus. Que tristeza.

Mas o cara não se mexia. O cara não saía do carro. Meu pai, já com seus quase 40 anos nas costas, ajudava na denegação do possível, que se transformava cada vez mais em provável: "ele mexeu a cabeça, está fazendo cera pra parar a corrida". Tomara que pare, tomara que cancele: Schumacher não vence, o campeonato se mantém vivo.

Quando o que passou a estar em jogo não era o campeonato e os 30 a 0, quando a morte começou a parecer possível, depois provável, depois certa, o terremoto não rachou apenas a Golden Gate, mas o teto do nosso sobrado. Aconteceu aqui, não ali. A morte existe, afinal. E agora?

Agora que Ratzenberger não era apenas Ratzenberger; Elio de Angelis não era apenas Elio de Angelis. A resposta, um tanto otimista, achei enquanto escrevia esse texto. Se não é genial, nem profunda, não é também uma mera tautologia. Me permitiu um título menos clichê para a efeméride e me deu a oportunidade de achar e me emocionar com essa bela foto, do pianista de Angelis. Ninguém é só alguém, mesmo.


Fotos:

1. Roland Ratzenberger, 1994.

2. Ayrton Senna e Elio de Angelis, 1985, companheiros de Lotus.

3. Elio de Angelis, 1986.

De onde você vem?