31 de julho de 2008

É hoje que a musa bebe água

Hoje tem Muse em Sampa. Amanhã tem resenha no blog, a quem interessar.

É mais ou menos isso aí embaixo que vamos ver hoje à noite: 





out of the blue


às vezes eu gostaria de ser menos estranho praqueles que eu amo

29 de julho de 2008

Construções, O Horror, O Horror


Conheci Juan Nieves Jr. neste mês de julho de 2008 e, no entanto, ele já está morto há quase 7 anos.

Sua morte faz aniversário no dia 11 de setembro.

Naquela terça-feira, no dia de sua morte, Juan acordou bem cedo como sempre, condicionado pela eternidade de 37 anos como trabalhador de restaurantes em Nova York. Durante 30 anos preparou saladas no Russian Tea Room - algo de que humildemente se orgulhava, pois havia adquirido o rótulo de especialista - e quando a direção do estabelecimento decidiu que o lugar deveria passar por uma "renovação", Juan se viu na rua. Para a sua sorte e de sua família, logo arranjou uma vaga no famoso Windows on the World, graças à sua especialidade, o que lhe garantiu o modesto salário de 7 dólares por hora. Quando morreu, seu salário já havia chegado a 12 dólares por hora, o que não deixava de ser uma tênue motivação pra pular da cama. Se ele soubesse que sua vida não passaria além daquela manhã, teria amado sua mulher como se fosse a última? Teria beijado cada filho seu como se fosse o único? Teria ido trabalhar com seu adorado Mustang ´67? Certamente. Mas como ele não sabia - ninguém pode saber, sinto que devo frisar ao leitor - Juan não fez nada disso. Saiu de casa com a quase certeza de voltar no fim do dia - da forma como todos fazemos, com quase certeza da volta - e atravessou a rua com seu passo tímido em direção à jornada pelo transporte público de Nova York, que o levava desde 1994 ao topo do mundo, o 107o. andar da Torre Norte do World Trade Center.

Da mesma maneira com que faz a todos, a rotina havia amortecido nele a capacidade de se maravilhar com o que havia se habituado a ver no caminho para o trabalho. A silhueta dos arranha-céus de Manhattan, especialmente a das Torres Gêmeas, há muito deixara de o impressionar, da mesma forma com que nós nos habituamos aos móveis da casa. Como um gorila que divisa as árvores que delimitam seu espaço, sentia familiaridade (e uma ponta de orgulho) ao ver os dois idênticos prodígios arquitetônicos que marcavam o horizonte. Everything in its right place, in its right place. Isso livrava sua mente para voar enquanto rumava para o trabalho, o que não quer dizer algo necessariamente prazeroso. É um prazer, certamente, sonhar acordado quando se é jovem e as janelas do mundo estão abertas, mas Juan tinha já seus 56 anos. À medida que sua vida se acelerava cada vez mais rapidamente, seus sonhos voltavam-se para o passado. Poderia ele, Juan, ter sido alguém diferente? Talvez um dos inúmeros engravatados que trabalhavam no WTC, com quem cruzava nos Sky Lobbies à espera de um elevador, quem sabe? Quem sabe tivesse sido até mesmo um daqueles CEOs que tomavam café da manhã olhando para Manhattan de seu lugar mais alto, como imperadores que avaliam seus domínios e o que ainda resta conquistar. Não, sua realidade lhe censurava algo tão inalcançável, tão diferente de sua vida, e costumeiramente descartava um sonho tão alto em favor de uma fantasia como corretor de seguros, por exemplo. Pensou que poderia ser o corretor ao seu lado no elevador (a rotina e a familiaridade também haviam lhe apagado a admiração que sentia nos primeiros tempos ao pensar em como aquelas máquinas poderiam subir dezenas de andares tão rapidamente). Logo olhou para o ascensorista e pensou que poderia ter sido ele. Sentiu uma inevitável compaixão por aquele homem, horas e horas dentro de uma caixa, subindo e descendo, esforçando-se em ser simpático, inventando papos pra puxar com desconhecidos. Enquanto deixava o elevador expresso, dirigiu uma despedida especialmente fraternal ao ascensorista. Sentiu enfim que tinha sorte de ser um preparador de saladas.

Era sorte mesmo, já que era um trabalho que exigia atenção mediana e Juan havia desenvolvido a habilidade necessária para executá-lo com a precisão de uma máquina. Sua mente ficava quase sempre livre para voar. Naquela terça-feira, Juan foi encarregado de preparar parte dos canapés que o Windows on the World serviria numa conferência sobre tecnologia da informação. Enquanto enchia meticulosamente uma bandeja de canapés, Juan perguntava-se o que diabos aquele pessoal tinha a dizer sobre tecnologias da informação. Seria sobre internet, algo com que ele, "burro velho", ainda não tinha se familiarizado? Um dia talvez a internet ligasse seres humanos habitando diferentes planetas, imaginou. Então, quando sua mente preparava-se para chegar a Vênus e sua mão caminhava em direção a mais um canapé, um evento inusitado trouxe bruscamente sua cabeça de volta ao corpo. Uma enorme explosão, um choque, o chão tremendo e o prédio balançando pra lá e pra cá como uma antena. Juan teve que se segurar na bancada para não perder o equilíbrio. Pratos caíram e quebraram no chão. O parco equilíbrio de suas pernas enviava seguidas informações para seu cérebro sentir medo, muito medo, e o cérebro respondia ao corpo com a respiração ofegante, o coração disparado, os olhos arregalados, a pele sentindo cada toque. Por alguns segundos Juan não era mais Juan, não tinha nome, era um animal querendo sobreviver. Separados pouco antes pelo torpor da rotina, corpo e alma eram agora uma coisa só.

Depois de alguns segundos o prédio parou de tremer e a confusão instalou-se no Windows on the World.

A fumaça imediatamente começou a aparecer, sinal de que a explosão dera origem a um incêndio. Mais de uma centena de pessoas no Windows on the World tentava descobrir informações sobre o que havia se passado. Logo, alguém soube que um avião grande havia se chocado com a Torre. Juan, agora altamente sensível, raciocinava sobre como é que uma máquina maravilhosa e tão dotada tecnologicamente como um avião poderia bater de maneira tão besta num prédio, e podia imaginar os horrores que se passavam andares debaixo dos pés dele. Enquanto a gerente do restaurante, agora com centenas de vidas sob sua batuta, tentava planejar uma evacuação, as condições se deterioravam rapidamente. A fumaça preenchia o ar cada vez mais rápido. E uma outra explosão, desta vez surda e sem os choques estruturais da primeira, só fez lembrar ao corpo de Juan o perigo de morte que corria. Estava sob um ataque proposital, soube logo depois por meio de um engravatado, que tanto podia ser um CEO quanto um alguém de posição irrelevante, tanto fazia naquele momento. Logo lhe veio à mente uma metáfora que lhe era cara: no fim do jogo, o rei e os peões voltam pra mesma caixa.

Para infortúnio de dois mil, oitocentos e tantos seres humanos, as torres teriam este mesmo destino.

A fumaça preencheu rapidamente o ambiente e o calor já fazia o chão começar a vergar. A esta altura, Juan e as outras cento e tantas pessoas que dividiam o espaço do Windows on the World com ele já tinham a informação de que não havia saída para baixo. Não se enxergava a mais de dois, três metros, e se respirava com dificuldade. As pessoas, já agora menos pessoas e mais animais sem nome, buscavam ar nas janelas quebradas, amontoando-se, dependurando-se para o lado de fora que dava para um precipício de 400 metros. Juan, ou aquele homem de meia idade, aquele ser vivo, também estava ali, lutando por seu espaço por ar. O calor já era insuportável. Se ficasse ali, iria cozinhar. Mas não havia para onde ir.

Nos especiais de televisão, em documentários, ouvem-se frases que devolvem a essas criaturas desesperadas um pouco de orgulho, auto-estima, autonomia, poder. Um ato de coragem, um último ato de controle sobre como se vai morrer: esta é a descrição comum. Dá-se ênfase especial ao caráter de decisão que acompanha o ato. As condições estavam tão "extremas", tão "inóspitas", que as pessoas decidiram pular. Elas decidiram, escolheram, dizem narradores em off, “especialistas”, testemunhas oculares, cinegrafistas. Todos, testemunhas e “especialistas”, animais amedrontados como Juan, como os outros 1300 presos nos últimos andares da Torre Norte, mas que não estavam lá no alto, e que não podem arriscar sentir o mesmo que as vítimas, ciosos que estão de suas identidades, daquilo que torna-os humanos, que os fazem pensar e dizer que têm alma e que não são passageiros de um mundo sem sentido numa viagem sem sentido. Recorrem a uma fantasia de controle e coragem das vítimas para não se jogarem eles próprios no vazio da não-existência.

Não há decisão, não há controle, não há escolha. Nem razão, pesos e contrapesos, prós e contras, should I stay or should I go. Mas também não há mero reflexo, um ato de susto que não passa por nenhum fio de pensamento. O ar fresco, o céu azul, as ruas minúsculas, tudo o que Juan podia imaginar lá fora parecia apenas ressoar profundamente na boca de seu estômago uma necessidade, um tem de ser assim!, pois faziam um contraste cruel com o fogo - que ele não via mas que era real demais (não precisava da imaginação para sentí-lo cozinhando as pernas) - e com a fumaça, que lhe preenchia a visão, os pulmões e o cérebro. E quando sentia este chamado surdo das ruas e a repelência eloqüente do Windows on the World, sentia atravessar-lhe a coluna vertebral uma onda de choque em direção à nuca que o fazia perder completamente a força do abdome, arquejando seu corpo, o pescoço dobrando involuntariamente, pendendo a cabeça para o lado, tremendo, quase no mesmo instante em que sentia a mesma onda refluir em direção ao intestino e à bexiga.

Não me sai da cabeça a imagem de Juan já dependurado na janela, o tronco inteiro pra fora do prédio. Mal conseguia segurar na coluna de aço que lhe queimava a palma da mão. Vejo cada linha de expressão de sua testa, franzida como nunca, e a vermelhidão dos olhos. Agora, Juan podia vislumbrar as ruas 400 metros lá embaixo, tomadas por luzes coloridas e sirenes estridentes. O formigueiro sempre inquieto agora estava em polvorosa, as ruas cheias de formigas confluindo para ajudar e salvar outras formigas. Para muitas, não haverá tempo.

Não me esqueço de Juan. Sua mente, sua alma, tenta se desprender do corpo, viajar para perto dos filhos, da mulher, do Mustang ´67 que comprou quando era novo, do sangue correndo pelo corpo quando o acelerou pela primeira vez. Acelerou o Mustang o suficiente? Amou o suficiente? Criou os filhos de maneira digna? Rende-se à última fantasia tentando resistir à inevitável tentação de ser apenas um animal desesperado, o que é, imagina-se acelerando o Mustang com sua família numa maravilhosa joy ride que nunca houve, e cai para uma última jornada solitária de 10 segundos.

7 de julho de 2008

Item de sobrevivência

Achei no blog do Pedro Dória, e a coisa foi passada pra ele pelo André Fucs. Um trecho de South Park, em tom de prelúdio de filme-desastre. Muito apropriado ao "dia em que a internet foi embora". A internet da Telefônica, diga-se. Foi um dos poucos dias em que abençoei o fato de ter Virtua, a net que só scavurska seus clientes.

5 de julho de 2008

Old silly joke

Williams fazem dobradinha na Inglaterra.

In hot blood

Eu nunca mais vou dizer
O que realmente penso
Eu nunca mais vou dizer
O que realmente sinto
Eu juro
Eu juro
(Titãs)


E este blog acaba de se transformar naquilo que nunca deveria ser: um diarinho confessional.

...

Nenhum homem é uma ilha, mas que têm umas montanhas gigantescas no caminho que leva a cada península, ah, isso têm.

...

Os mal-entendidos são uma coisa odiosa, sempre pensei. Claro, nunca me preocupei muito se havia interpretado errado alguma pessoa, ou alguma coisa que me foi dita. Nunca me preocupei demais, por exemplo, se apenas estava projetando meus preconceitos numa determinada pessoa, ou num discurso qualquer. O que sempre me preocupou era como eu e meus atos poderiam ser mal-interpretados. Ou o preconceito que poderia ser projetado sobre mim. Por isso, sempre me esforcei para ser o mais possivelmente claro nas minhas intenções, naquilo que dizia, nos gestos e olhares, para que não houvesse traço de dúvida sobre o que eu sou. É um egocentrismo do caralho, eu sei, eu sei. Mas não me entendam mal.

Foi lendo Milan Kundera que pude perceber que a comunicação humana está fadada ao fracasso, em grande medida. Trata-se de uma característica inerente a nossa condição, acho. Sempre haverá ruídos, distorções, e as mensagens que jogamos pros outros nunca serão recebidas sem os ruídos e as distorções.

Recentemente, agi com uma ingenuidade imensa ao pensar que poderia explicar com sinceridade e honestidade, evitando os ruídos, as minhas desonestidades e insinceridades. Pensei que explicar algumas coisas, os conflitos, as contradições, seriam uma forma de amenizar o sofrimento, meu e da pessoa afetada pelas minhas sujeiras. Não estava nem um pouco confortável com a imagem que se fazia de mim, embora essa imagem fosse mais do que compreensível e esperada. E queria que essa pessoa entendesse o incompreensível, e se livrasse de uma carga que pode ser eterna, uma ferida que nunca fecha, dessas que acabam guiando o destino da pessoa dali por diante. Mas - e é aí que entram os ruídos - como esperar que se acredite na sinceridade de alguém que agiu com desonestidade? Como acreditar numa sinceridade que tenta explicar o seu oposto, a insinceridade? E como esperar que se acreditasse que alguém desesperadamente egocêntrico poderia agir não apenas preocupado com a sua própria imagem, mas com a vida de alguém importante demais pra ser tratado com a indiferença da falta de comunicação? "Qualquer pessoa que pensa conhece o paradoxo". A ingenuidade está em pensar que aquela pessoa importante, fundamental em muitas coisas, pensasse num momento de puro ódio e raiva.

Se já é difícil a comunicação com alguém que pensa, alguém muito longe de ser uma pessoa convencional, o que dizer do diálogo com um poço de convencionalidade? Uma idéia pairava na minha cabeça até ontem: explicar, me explicar, para algumas outras pessoas também muito importantes, fundamentais. Mas se o diálogo já era improvável numa situação em que nenhum ato meu era questionado, o que dizer de agora? Se minhas opiniões sobre filmes, livros e, pior, religiosidade, eram solenemente descartadas por preconceito, o que dizer dos meus atos recentes? A idéia vira-e-mexe zunia pela minha cabeça: escrevendo como escrevo sempre, com o sangue no papel, com a sinceridade e abertura que garantiriam pureza na comunicação.

Descobri tardiamente o valor inestimável da literatura com Kundera. Quanto tempo perdido! Foi com ele que pude perceber que um historiador e ensaísta que adoro tinha razão ao dizer que história e literatura estão irmanadas por um objetivo cognitivo (indo mais longe, pude perceber a mesma coisa na relação entre ciência e arte, algo incensado aos quatro cantos, mas que eu nunca tinha entendido antes - se bem que essa relação sempre foi puxada mais pro lado do subjetivismo e eu, claro, gosto de ver pelo lado oposto. Enfim, este não é um texto de epistemologia). Kundera me revelou determinados traços da realidade, o principal deles o do mal-entendido entre as pessoas, nossa malfadada tentativa de comunicação. Ele me enfiou uma pulga atrás da orelha que só foi sentida de verdade mesmo quando li uma outra coisa.

A Sangue Frio (In Cold Blood), de Truman Capote, narra a história de um assassinato horroroso no interior do Kansas. Quatro pessoas de uma mesma família foram brutalmente executadas e Capote, jornalista novaiorquino, reuniu um corpo gigantesco de evidências para contar a história na forma de um romance de não-ficção. (A história da gestação desse livro foi recentemente contada no ótimo Capote. Quem ainda não viu o filme já deve saber o que está perdendo.) O livro (e a história) são especialmente saborosos por causa do problema incrível que é a personagem de Perry, um dos dois assassinos. Perry é um mestiço, meio índio, meio "caucasiano", o que já dá muito pano pra manga. Ele é especialmente sensível, toca violão e canta um repertório vasto para platéias imaginárias, escreve um diário. Se não me falha a memória, Capote, o do filme, chega a dizer que ele e Perry são o mesmo, só que Perry entrou para a vida pela porta dos fundos. Quando Perry esteve preso pela primeira vez, escreveu uma carta para a irmã (talvez seu único elo com o mundo exterior), tentando se explicar. A resposta da irmã, então, acabou por ser analisada de maneira inacreditavelmente perspicaz por um amigo da prisão, o "superinteligente Willie-Jay". O que Willie-Jay escreveu para Perry chegou, por vias tortuosas e inesperadas, a mim, com muitos ruídos, claro, inclusive os que tenho aqui dentro:


A sua carta para ela, e esta, a resposta, falharam em seus objetivos. Sua
carta era uma tentativa de explicar sua maneira de encarar a vida, já que você é
necessariamente afetado por ela. Destinava-se a não ser compreendida, ou
interpretada literalmente demais, porque suas idéias se opõem ao
convencionalismo. Que poderia ser mais convencional que uma dona de casa com
três crianças, "dedicada à sua família"? Nada mais natural que ela se
ressentisse de uma pessoa não convencional. Há uma considerável hipocrisia nas
convenções. Qualquer pessoa que pensa conhece o paradoxo. Mas ao lidar com
pessoas convencionais é sempre vantajoso tratá-las como se não fossem
hipócritas. Não se trata de infidelidade aos próprios conceitos. Trata-se de uma
concessão para que se possa continuar a ser um indivíduo livre da ameaça
constante das pressões convencionais. A carta dela fracassou porque ela é
incapaz de conceber a profundidade do seu problema - não pode medir as pressões
sofridas por você devido ao meio ambiente, à frustração intelectual e uma
tendência crescente ao isolacionismo.


Como explicar o paradoxo para pessoas que são incapazes de compreender o que está fora do mundo das convenções, da normalidade? Não se explica nada. Acho que eu nunca mais vou dizer o que realmente penso para essas pessoas.

De onde você vem?