18 de janeiro de 2013

Que merda é essa?

Como é possível que as ruas não estejam, neste exato momento, cheias de gente com as mãos nos cabelos e de olhos arregalados, numa interminável oscilação entre o espanto contido e o descontrole histérico, entre o sussurro pensado e o discurso destrambelhado, indagando os transeuntes sobre que merda é essa?

Que merda é essa? Que merda é essa? A Terra está girando. A Terra está girando. A Terra tá girando! A gente vive num planeta. A gente vive. Num planeta. Que gira. E que é imenso. Imenso! A gente vive e morre num planeta. A gente brotou dele. A gente é uma formiguinha, uma ameba, perto dessa bola redonda, gigante, que quase não dá pra imaginar de tão grande. E a gente vive na casquinha dela, uma casquinha de ovo, toda rachada, de uma finura que não dá pra acreditar. E um terremoto arrebenta tudo se alguma coisinha sair do lugar e se mexer um pouquinho, nessa casca. E dentro da bolona é tão quente que uma montanha derrete, se desse pra uma montanha cair lá dentro, assim, de uma vez.

E a gente vive nisso! Numa porra dessas. Vive. Vive e morre. A gente se dissolve. A gente se dissolve! A gente é um tipo de coisa que se dissolve. E todas as coisas do nosso tipo se dissolvem – e já tiveram um monte, uma pancada de outras coisas meio diferentes que já não existem mais, mas que são do mesmo tipo nosso, desse tipo de coisa que se dissolve – todas as coisas do nosso tipo se dissolve, já se dissolveu e vai, puta merda, se dissolver. Mais cedo ou mais tarde. De uma forma ou de outra. A gente se dissolve e volta pra casca de ovo. E ninguém sabe até quando isso vai continuar, quando é que todo mundo vai se dissolver e umas coisas diferentes vão aparecer no nosso lugar. Porque parece que sempre foi assim. Essa é a regra da casca do ovo. Ela gera tudo, mas suga tudo de volta. Suga tudo. Até as sepulturas e os nomes, ela suga. É só esperar. Ela espera. Já durou uma eternidade, e vai durar outra. Praticamente pra sempre, quase. Pelo menos pra coisas como a gente, que praticamente aparecem e já somem, sugadas tão rapidinho, vai ser sempre difícil conseguir entender o que é o tempo da bola gigante.

Mas a bola gigante, o planeta, que gera e suga todo mundo de quem a gente já ouviu falar, e vai sugar todo mundo que a gente nem sequer vai conhecer, essa Terra não é nada. Nada. Em cima da nossa cabeça tem o céu, não tem? Mas o céu não é nada. A gente fala céu, como se fosse alguma coisa. Mas não tem nada em cima da nossa cabeça. Não tem teto. Aquilo ali não é um teto. Aquilo é nada. Nada.

Fora o nada tem algumas coisas. Tem a Lua, o Sol, as estrelas. São os astros, não é? É, o caralho! Astros... A gente fala astros e já pensa que é alguma coisa feita de coisa diferente do que a gente, aqui. Astros... Astro é coisa do céu, e aquelas coisas não estão lá no céu, porque o céu não existe! O céu é nada, o céu não é uma tenda de circo em que um monte de luzinha fica passando pra lá e pra cá. Não é que o Sol e a Lua e as estrelas tão tudo no céu. A gente faz parte do céu, junto com o Sol, a Lua e as estrelas! A gente, na casca da Terra, está no céu, girando nele, zanzando por ele, ao redor do Sol, indo com o Sol por aí. A gente, na casca da Terra, como a Terra toda, é feita da mesma coisa que tem nos astros. É por isso que o céu não existe, entenderam? O céu não existe!

A Lua é um outro mundo. Um outro mundo. Mundo em que dá pra ir pra lá e pra cá, que tem montanha também. Um mundo. Um tanto menor, que gira em torno da Terra. Como vocês podem dormir com isso? É um outro mundo lá, um mundo que você pode ver todo dia daqui, uma outra bola. E tem muitas outras, que ficam zanzando em torno do Sol como a Terra. Tem outras bolas, outros mundos, que também têm montanhas. Outros não têm montanhas. Outros têm mais ar do que qualquer outra coisa. Mas é tudo mundo, é tudo lugar em que daria pra andar, ou nadar, ou voar, se gente não fosse tão fraco e ajeitado só pra Terra. Tudo girando em torno do Sol, como o nosso mundo. A grande diferença é que a gente morreria mais rápido lá do que aqui, nesse pontinho, nesse quase nada.

Pontinho, sim. Vocês já viram a Terra do espaço? Ela é azul e tal, cheia de nuvens, redonda. É bonita. Mas vocês aí, que estão me olhando da sala de jantar, que lavam o carro, limpam a orelha, escovam o dente e passam fio dental, vocês não viram ela de longe. De muito longe. Quanto longe? Não sei. Longe pra caralho. Pra lá do último planeta, da última bola que gira em torno do Sol. Já viram? Quase não dá pra ver. É um nada. Um pontinho.

A gente vive num pontinho. A gente vive. Num pontinho. Visto de longe, é um pontinho. Mas o longe pra caralho que eu falei é até longe. Só que não é assim tão longe, longe de verdade, longe que não dá pra ver a Terra nem fodendo. Longe mesmo é o seguinte. Vou explicar, e acho que vai ser agora que vocês vão começar a querer a ficar tudo meio espantado, estarrecido e pasmo como eu sou. Porque de tudo o que eu já falei até agora, talvez tirando a Terra sendo um pontinho, tudo isso vocês aprendem na escola e acabam ficando tudo meio anestesiado. Ninguém carrega na alma e sente de verdade a maluquice de que a gente tá tudo grudado numa bola gigante, que na verdade é uma merdinha de nada, no nada. Ninguém leva isso tudo até o fundo de quem realmente é, porque se levasse estava todo mundo aqui na rua comigo agora, com o olho esbugalhado, quase sem cabelo.

O Sol, vocês sabem o que ele é. Todo mundo sabe. O Sol é uma estrela. Mas o que significa isso são outros quinhentos. O que são as estrelas? Todo mundo sabe a xaropada: é um astro que produz luz própria, enquanto o resto, os planetas, as luas, os cometas, e etcetera, só refletem a luz das estrelas, e tal. Isso é xaropada. Vamos parar de repetir isso, porque já deu. Pode até ser verdade, mas e daí? Não deixa ninguém doido. O que deixa doido, o salcifufu da história toda, é que as estrelas são sóis. O Sol é uma estrela e as estrelas são sóis. Ligue os pontos.

Quem liga os pontos não pode só ficar aí na sala de jantar, lavando o carro, limpando a orelha, escovando o dente e passando fio dental. As estrelas são sóis, cada uma delas que a gente vê no céu. Esse monte de estrela aí. Ligou os pontos? Pra gente ver eles assim, como pontos, é porque esses sóis tem que tá muito longe, longe pra caralho, longe pra caralho!

A maioria desses sóis, porque são do mesmo tipo de coisa do Sol, deve ter planetas, outros mundos, outras bolotas, zanzando ao redor deles. E é uma caralhada de sol. Se só no nosso bairrinho, no quarteirão cósmico em que a gente vive, tem uma caralhada de sol, com uma caralhada de mundo ao redor, imagina o resto. E tem uma caralhada de galáxias. Uma caralhada, isso até onde a gente consegue ver. E os sóis nascem e morrem, e os mundos também nascem e morrem.

Por isso, não me venham dizer que não tem uma caralhada de coisas do nosso tipo, tudo espalhado por aí que nem micróbio numa pia, coisas que, como nós, surgem e somem assim, do nada, rapidinho, num estalo, espalhadas por aí em outros mundos, em outras cascas de ovo, coisas que vêem e amam outros sóis, que também percebem que a folhinha em que vivem e morrem é só uma parte de uma floresta sem medida. Coisas capazes de levar essa loucura toda até o fundo de quem realmente são, coisas que aparecem e se dissolvem em infinitas cascas de ovo, que saem para a rua, com os olhos esbugalhados, quase sem cabelo, perguntando que merda é essa, que merda é essa, que merda é essa.

13 de janeiro de 2013

Má educação

Espetacular e chocante, a matéria de Al Baker no NYT de hoje coloca um enorme ponto de interrogação na cabeça de muita gente que, como eu, vê com bons olhos a implementação de programas de educação especial para crianças que manifestem especial talento ou dote intelectual.

Em resumo: o texto aponta para um enorme desequilíbrio racial, que privilegia brancos e asiáticos, nos programas de educação acelerada da prefeitura de Nova York. O desequilíbrio e o elitismo sempre existiram nesses programas, cujas origens residem num esforço por manter o envolvimento das famílias de classe média na rede pública e que data dos anos 1950; porém, tem havido um crescimento, aparentemente involuntário, da segregação racial por meio de testes que fetichizam a objetividade, desde 2008. As escolas que possuem os programas atendem principalmente a bairros de classe média e de brancos. Os depoimentos de pais de minorias raciais são estarrecedores.

É pra abalar a convicção de qualquer um. Serão realmente factíveis os programas do tipo? Será possível tê-los sem que se reforcem as clivagens sociais e raciais?

Se você se deparar com o paywall do NYT, pegue aqui a matéria inteira em PDF.

11 de janeiro de 2013

Videogame, arte

Antes de mais nada, se você se interessa por videogame, assista às primeiras impressões do excelente TotalBiscuit sobre este que parece ser um dos jogos mais legais do começo do ano: Thomas Was Alone.

thomas-was-alone_496

Está ficando cada vez mais interessante a mistura de videogame com criação artística original, cuidadosa, bem sacada. Nos últimos anos tivemos Bastion, Limbo e Dear Esther como expoentes de uma tendência em combinar tradicionais experiências de jogo com expressões artísticas apuradas que, salvo raras excessões, não costumam das as caras nesse tipo de mídia. O fato de que quase todas as inovações artísticas em games vêm sendo feitas por estúdios independentes é bastante eloquente sobre como funciona esse ramo da indústria de entretenimento.

Bastion impressiona pela combinação de um narrador onisciente, primorosamente interpretado, com uma trilha sonora de arrebentar e um visual cartoon psicodélico. A ação é bastante tradicional, com perspectiva isométrica. O que interessa e motiva a experiência de levar o heroi adiante é a narrativa em si, a história do heroi, e não a realização de objetivos meramente impostos ao jogador. Como não joguei Bastion até o final, não posso avaliar a narrativa e o sabor que ela deixa quando desligamos o jogo. Mas já ouvi opiniões de amigos, e Bastion parece ser realmente maravilhoso como um todo.

Bastion_E32011_0004

Limbo é o contrário de Bastion em muitos aspectos. Minimalista, é um side-scrolling em preto e branco quase sem música, sem qualquer narração ou voz. Pouquíssimos botões são usados para superar obstáculos simples e resolver puzzles complicados. O elemento central é a solidão em que o jogo mergulha o protagonista e, consequentemente, o jogador. A situação do heroi, um menininho, é enternecedora durante todo o jogo (ele morre de maneiras horríveis!) e seu destino, quando todos os obstáculos são superados, é absolutamente comovente. Não há redenção hollywoodiana.

screenshot05-800x450

Dear Esther, por sua vez, é o mais artisticamente ambicioso dos três – quem sabe, o de toda a história dos games. Pra começar, é bastante questionável caracterizar Dear Esther como um jogo. Em primeira pessoa, você vaga por uma ilha deserta e revivencia memórias esparsas, soberbamente interpretadas em voz, que dão pistas sobre a sua situação atual. A sua única ação é caminhar pela ilha. Você não pula, não corre, não coleta itens, não resolve puzzles, não atira, não mata. Você apenas experimenta o ambiente e as memórias. Você sofre alucinações e descobre lugares visualmente magníficos. Dear Esther não é um sandbox: tem começo, meio e fim – a linearidade da ação é suplantada pela aleatoriedade com que as lembranças são revividas. O desafio do jogo – e o desafio, talvez, seja um motivo para chamá-lo de jogo, embora sui generis – é interpretar a sua experiência, propositalmente polissêmica, confusa e inesquecível.

dearesther1

No caso de Thomas Was Alone, na criação de identidade em blocos geométricos os desenvolvedores apostaram numa narrativa bem feita – que me parece, como em Bastion e Dear Esther, excelente tanto do ponto de vista literário quanto da interpretação do ator de voz – e num visual minimalista, como em Limbo. Pelo que vi, devem ter conseguido.

É difícil prever o que isso tudo significa para o futuro da criação artística em videogame, ainda timidamente explorada, cujos frutos recentes apontam para um potencial estrondoso.

10 de janeiro de 2013

Notas sobre a passagem naturalista de Árvore da Vida

As imagens selecionadas do universo, muitas delas, são clichês, batidas, usadas à exaustão em vídeos de divulgação científica (como a cabeça de cavalo, a nebulosa planetária do olho do gato, a galáxia do sombrero). Isso denunciaria alguma falta de familiaridade de Malick com a astronomia? Ou apenas uma forma dele trazer esse universo para mais perto daquilo que é conhecido pelo grande público? Se sim a essa última pergunta, por quê? Não seria melhor mostrar o universo em toda a sua estranheza e não apenas em seu esplendor, propositalmente para causar ohs e ahs de pseudo-admiração - pois já desbotada: causam um "ai que lindo" saindo da boca e só.

Agora, o Sol e os planetas nascendo são uma coisa lindíssima...

A sequência escolhida para coisas como a origem da vida ou o asteróide de Chicxulub, tudo isso mostra a preocupação em emoldurar o filme com a visão científica. Mas por que a escolha de eventos tão clichês como a colisão do asteróide e os dinossauros? A extinção do limite K/T (65 milhões de anos atrás) não é mais ou menos importante do que qualquer outra das cinco conhecidas extinções em massa dos últimos 500 milhões de anos. Isso leva o filme a parecer mais uma aula de ciências (pelo didatismo e pela escolha de eventos célebres) e menos uma apresentação que emule ou recrie a estranheza da natureza ao homem, ao mesmo tempo que o vincula completamente a ela.

Agora, a sequência dos dois dinossauros é soberba...

7 de janeiro de 2013

Correlação, causalidade

Interessante correlação entre intoxicação de crianças em massa por tetraethyl lead e, 20 anos mais tarde, o pico de violência nos EUA das décadas de 70, 80, no Mother Jones.

Bom artigo de opinião do Monbiot sobre a matéria do Mother Jones.

A coincidência é impressionante, a consideração da hipótese é profícua, mas correlação não é causalidade. Com isso em mente, avalie esta sugestão de que a Primavera Árabe ocorreu por falta de sexo e acúmulo de testosterona nos homens.

De onde você vem?