27 de junho de 2009

A demarcação da pseudociência

Uma coisa recorrente em obras de divulgadores da ciência como Richard Dawkins e Carl Sagan é o ataque à pseudociência. Tentam alertar para um perigo das sociedades modernas: aquilo que parece ser ciência pode ser uma impostura. Em linguagem clara: você pode estar levando um Porsche com motor de Fusca e lataria de plástico.

Foi mais ou menos o que aconteceu recentemente com minha mãe. Crente de que havia encontrado a solução definitiva para meu notório problema de ronco e apneia do sono, ela não titubeou em gastar 50 reais na compra de um novo “aparelho hi-tech anti-ronco”, o No Ronco. O aparelho promete acabar com o ronco ao “enrijecer os nervos da faringe” com uma “pressão no septo nasal” levada a cabo por “dois chips eletromagnéticos que emitem ondas magnéticas”, eliminando assim o ronco com uma “taxa de eficiência superior a 90%”. A bula afirma que o No Ronco é “confeccionado com as maiores e mais inovadoras tecnologias do mercado” e que seu “chip” é “sintetizado com elementos raros da natureza”.

Não é preciso ser um cientista para perceber que há algo de errado nessas promessas, que “maiores e mais inovadoras tecnologias” casadas num “chip” fabricado com “elementos raros da natureza” só podem ser uma coisa: conversa fiada de vendedor. Desmontado o “aparelho”, percebe-se que os dois “chips” são simples e prosaicos imãs. No Ronco usa o jargão acadêmico, com referências a dois campos tecnocientíficos (a informática, na moda, e o eletromagnetismo, clássico referencial pseudocientífico), para sustentar promessas ilusórias. Não há dúvidas desde o primeiro momento em que se conhece o No Ronco: é um produto pseudocientífico.

No entanto, a detecção de pseudociência não vem sendo algo totalmente racionalizável. Passa mais pelo faro – a dita intuição – do que por passos racionais e lógicos. Como o bolso de minha mãe bem sabe, é necessário responder às indagações: o quê, de fato, é a pseudociência? Como estabelecer critérios inequívocos para saber o que é e o que não é pseudociência? Qual a linha demarcatória?

Pseudociência é todo discurso, saber ou crença, que se disfarça de ciência para conseguir credibilidade (fiquemos com essa definição, por enquanto). Apesar de todos os ataques céticos, a ciência ainda tem muita credibilidade na nossa sociedade. Quantos anúncios não vêm acompanhados da chancela de "cientificamente comprovado" ou similares para atestar que seus produtos são confiáveis? Por quê os autores de livros de auto-ajuda e boçalidades semelhantes têm a necessidade de acompanhar seus nomes dos títulos de "MD" ou "PhD"? A intenção é clara. A ciência se tornou, há muito, base para decisões públicas e ainda é considerada, em inúmeras direções, nossa maior fonte de conhecimento seguro sobre o mundo. Sua roupa, pelo menos, ainda vende. E muito.

O problema maior de se definir critérios que demarquem a pseudociência é que isto se desdobra numa questão ainda mais complicada: quais seriam, então, os critérios para demarcar a própria ciência? A demarcação e identificação do que é científico ocupou filósofos e epistemólogos durante séculos, desde a emergência da ciência moderna, sem que se chegasse a um acordo. Um breve catálogo das principais vertentes na filosofia da ciência que arriscaram propor critérios gerais para a definição de ciência – só no século XX – dá conta de demonstrar o tamanho do problema: os positivistas do Círculo de Viena e a ênfase na possibilidade de se verificar uma proposição empiricamente; Karl Popper e a ideia de que uma teoria só é científica se abre a possibilidades de ser refutada por observações ou experiências que fiquem nas raias do concebível; Thomas Kuhn e a imagem da ciência normal, em que a prática científica mais comum é identificada com a resolução de problemas dados por um paradigma teórico que só de vez em quando é desafiado pelas anomalias que surgem nas pesquisas; Imre Lakatos e o critério de progressividade, em que estamos diante de ciência quando um programa de pesquisa cria novas teorias que vão substituindo as velhas pela capacidade de previsão e maior embasamento empírico; e Robert Merton e seu ethos científico, com imperativos institucionais como o universalismo, o ceticismo organizado, o senso de comunidade e o desinteresse pessoal. Não há consenso entre estas diferentes demarcações. Quando muito, há uma certa convergência em certas questões específicas.

Como afirma o filósofo Sven Ove Hansson, em texto sobre a pseudociência na Stanford Encyclopedia of Philosophy, é paradoxal que haja tamanho consenso quando o assunto é meramente identificar os campos que devam ser considerados ciência, e ao mesmo tempo tanta dificuldade para encontrar critérios gerais que demarquem com clareza o que é ciência e o que não é.

Da mesma forma, é bastante comum encontrarmos convergência em opiniões na comunidade científica - e não somente dentro dela - que classificam o criacionismo, a astrologia e a homeopatia, por exemplo, como pseudociências. A divergência está no porquê disso tudo ser pseudociência. As possíveis respostas esbarram primeiro no problema muito comum de se misturar pseudociência com anticiência, e mesmo pseudociência com todos os discursos alheios ou estranhos ao discurso científico. Basicamente, como já dito, por pseudociência entende-se um saber ou crença que, não sendo científico, passa por ciência, veste sua roupa e emula suas maneiras na tentativa de criar uma impressão de ser científico. Apesar de muito útil, este é um critério problemático: a homeopatia oscila entre colocar-se como anticiência e como ciência. O mesmo ocorre com a astrologia – atualmente, com maior tendência a se considerar realmente não-ciência ou anticiência. A questão é que não há um corpus pseudocientífico coerente em oposição ao corpus científico mais ou menos definido. E, pior, em alguns casos aquilo que pode ser identificado como ciência mal-feita (ou seja, experimentos mal conduzidos, teorias logicamente mal elaboradas, etc.) tende, em alguns casos, a ser confundido com pseudociência. A única forma de separar o joio do trigo, neste caso, seria saber se, por trás de conclusões estranhas à ciência originadas de incompetência ou distorções propositais, há uma doutrina não-científica mais ou menos coerente tentando se passar por ciência.

O que torna a tarefa demarcatória entre ciência e pseudociência algo extremamente complexo (para alguns, impossível) é que a linha divisória varia com o tempo. É histórica. Se o próprio conhecimento científico é um fenômeno histórico, como, então, estabelecer critérios universalmente aceitos para o que é científico e o que só parece sê-lo? Ainda não há respostas. O que é certo, principalmente para aqueles que algum dia foram lesados por falsas promessas fabulosas vestidas de jaleco branco e com um tubo de ensaio na mão, é que ainda é necessário encarar o problema filosófico e epistemológico de se definir o que é ciência e pseudociência, mesmo que para isso se reconheça buscar estabelecer um critério imperfeito e limitado, fruto de seu tempo.


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Este texto é uma adaptação de um outro post, só que um pouco mais formal e ao mesmo tempo mais didático e mais "jornalístico", conforme as exigências da disciplina do Prof. Marcelo Knobel, do Labjor/Unicamp.

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