20 de julho de 2022

Mundo Cinza

Na minha rua têm umas três ou quatro turmas de gatos de rua. Todos são bem tratados, alimentados por duas das minhas vizinhas, além de castrados, vacinados e vermifugados por um bombeiro aposentado, o Sr. Francischini. São Francischini.
Um desses gatos da minha rua era o Cinza.
O Cinza vivia no jardim do casarão ao lado do meu prédio há alguns anos. Ele deve ter sido abandonado já adulto e nunca se enturmou direito. Morava ali junto com outros dois, uma pretinha e um rajadinho com peito branco. Os três pareciam refugiados, excluídos da gangue que vive em frente, perto do ginásio.
Sempre foi especialmente arisco e medroso, o Cinza. Mas tinha jeito de já ter tido uma família humana, e quando ele se sentia seguro, atrás do portão, dava toda a pinta de ser um gato doce e companheiro. Como o meu companheiro Choco Chocão, com quem passeio pela rua já faz 9 anos.
Choco também conhece os gatos da rua mas não tem por nenhum deles a fixação que acabou desenvolvendo pelo Cinza. Então, toda vez que saíamos de casa eu ficava esperto pra ver se o Cinza não estava na área antes de soltar o Choco da coleira. O nó é que o Choco não podia ver o Cinza, nem o Cinza ver o Choco. As hostilidades logo desandavam em perseguição. Era o Cinza correndo, o Choco correndo atrás, e eu correndo atrás do Choco, berrando.
Uma vez, numa dessas correrias, Cinza e Choco foram parar na garagem de um prédio no outro quarteirão. Minha sorte é que eu conhecia um dos moradores desse prédio: Conrado, o terraplanista, um dos melhores amigos do Choco, um cara que também passeia com o gato dele na rua – essa é uma história que fica pra depois. Liguei pro Conrado e resgatamos o Choco. O Cinza deve ter usado alguma magia de gato de rua pra se desmaterializar naquela garagem. Depois disso, nunca mais soltei o Choco da coleira.
Há um mês, mais ou menos, notei a falta do Cinza. Essa semana perguntei sobre ele para a Andréa, uma das mulheres que alimentam os gatos – elas conhecem cada um deles, dão até nome para os bichanos. Ela me disse, com muita raiva na voz, que ele tinha sido encontrado morto no gramado do ginásio, com marcas de estrangulamento. Também me disse que o perpetrador do ato covarde haverá de acertar as contas com Deus, que a justiça divina nunca falha.
Eu quis aquiescer – por ela, pelo Cinza, por mim, pelo Choco, pela tristeza que senti no momento. Não consegui. Disse a ela que era preferível tentar achar o culpado – os prédios têm muitas câmeras – do que esperar pela Retribuição do Criador. (Parei por aí. Se eu dissesse a ela o que penso sobre Deus, deuses, a natureza, o universo, era capaz de ela não me cumprimentar direito dali pra frente).
Às vezes me dá um pouco de raiva de não conseguir acreditar em Deus. Quando vejo o caixão de uma pessoa amada sendo enterrado, por exemplo. Mas quando eu soube do destino do Cinza senti algo inesperado, um desejo muito claro de que houvesse uma forma de divindade, uma forma bem definida de divindade: vingativa, feroz, com garras e presas afiadas, de olhos furiosos – um Deus-Gato, cuja função cósmica seria a de dilacerar eternamente a consciência dos que gratuitamente esvaziam o mundo de criaturas belas, os que se dão ao ignominioso prazer de exercer o poder de varrer da existência um ser mais fraco.


10 de abril de 2022

Árvores e esquecimentos

Resolvi deixar isso aqui pronto para quando viesse a efeméride. A de um ano a partir do dia da sua morte, ou do dia em que eu soube que você morreu. Talvez seja melhor publicar nesse dia, o dia em que eu soube que você tinha morrido. Nunca fui de deixar as coisas prontas por antecedência. Mas esperar pela efeméride para poder escrever algo para você não faz sentido. Você está comigo todos os dias, desde que acordo até a hora de dormir. Especialmente na hora de dormir. Penso em escrever algo para você todos os dias, e não sei por que não o fiz até agora, até pensar na data que se avizinha.

Tenho que ter uma deadline pra tudo. Até para dizer o que sinto ou fazer o que quero. Se eu soubesse qual era a sua deadline, teria ido até você e dito que precisava de você no mundo para que eu continuasse vivo. Pelo menos é isso que gosto de dizer a mim mesmo. Não sei se eu teria coragem de estragar o pouco que restava da sua existência tentando conversar contigo.

E de qualquer forma, você tem estado comigo desde subiu aquela escada e nunca mais te vi.

 

À efeméride. Faz um ano que você morreu, e aqui vou usar a minha velha ladainha, a que tenta plasmar tudo o que acontece na casca do nosso planetinha a um contexto cósmico: uma volta ao redor do Sol desde que você morreu. Soo ridiculamente grandiloquente tentando ser poético, então vamos lidar só com coisas concretas: o que a dureza do real sugere é que o planetinha deu mais ou menos 4,5 bilhões, ou melhor, 4 mil milhões e meio de voltas ao redor do Sol desde que nasceu. 39 desses 4.500.000.000 rodopios, ou 0,00000086% deles, me diz o computador, foram acompanhados da sua presença. Numa dessas voltas você esteve de mãos dadas comigo.

Dizem que o planetinha deve dar mais uns quatro ou cinco mil milhões desses rodopios até que o Sol, agora inimaginavelmente maior, inflado, vermelho, em uma morte lenta, o engula. Éons antes disso, eu e você e a voltinha que demos juntos já teremos sido esquecidos. Quaisquer indícios de que tenhamos existido – eu, você e a nossa voltinha – devidamente deletados, sem volta. Não haverá nenhum vestígio da proporção ínfima (zero vírgula zero zero zero zero zero zero zero e mais alguma insignificância numérica) de tempo a que corresponde as nossas voltinhas diante dos olhos do Sol.

Para observadores celestes desse futuro chocantemente distante, estranhos habitantes da superfície de algum outro planetinha em volta de algum outro sol, esse processo de apagamento final do sistema solar será um espetáculo de pequenas proporções, mas também único e irrepetível. Cada estrela de sequência principal que termina em nebulosa planetária acaba de um jeito diferente, mas todos terrivelmente lindos, terrivelmente lindos.

A última coisa que os seus terrivelmente lindos olhos me disseram é que a vida é imponderável. Em seguida, deram a volta e se afastaram. E foram virar longínquas nebulosas planetárias selvagens uma volta e meia depois. E nessa última volta desde que você morreu, volta e meia eu voltei à nossa voltinha.

Uma volta.

De onde você vem?