Na minha rua têm umas três ou quatro turmas de gatos de rua. Todos são bem tratados, alimentados por duas das minhas vizinhas, além de castrados, vacinados e vermifugados por um bombeiro aposentado, o Sr. Francischini. São Francischini.
Um desses gatos da minha rua era o Cinza.
O Cinza vivia no jardim do casarão ao lado do meu prédio há alguns anos. Ele deve ter sido abandonado já adulto e nunca se enturmou direito. Morava ali junto com outros dois, uma pretinha e um rajadinho com peito branco. Os três pareciam refugiados, excluídos da gangue que vive em frente, perto do ginásio.
Sempre foi especialmente arisco e medroso, o Cinza. Mas tinha jeito de já ter tido uma família humana, e quando ele se sentia seguro, atrás do portão, dava toda a pinta de ser um gato doce e companheiro. Como o meu companheiro Choco Chocão, com quem passeio pela rua já faz 9 anos.
Choco também conhece os gatos da rua mas não tem por nenhum deles a fixação que acabou desenvolvendo pelo Cinza. Então, toda vez que saíamos de casa eu ficava esperto pra ver se o Cinza não estava na área antes de soltar o Choco da coleira. O nó é que o Choco não podia ver o Cinza, nem o Cinza ver o Choco. As hostilidades logo desandavam em perseguição. Era o Cinza correndo, o Choco correndo atrás, e eu correndo atrás do Choco, berrando.
Uma vez, numa dessas correrias, Cinza e Choco foram parar na garagem de um prédio no outro quarteirão. Minha sorte é que eu conhecia um dos moradores desse prédio: Conrado, o terraplanista, um dos melhores amigos do Choco, um cara que também passeia com o gato dele na rua – essa é uma história que fica pra depois. Liguei pro Conrado e resgatamos o Choco. O Cinza deve ter usado alguma magia de gato de rua pra se desmaterializar naquela garagem. Depois disso, nunca mais soltei o Choco da coleira.
Há um mês, mais ou menos, notei a falta do Cinza. Essa semana perguntei sobre ele para a Andréa, uma das mulheres que alimentam os gatos – elas conhecem cada um deles, dão até nome para os bichanos. Ela me disse, com muita raiva na voz, que ele tinha sido encontrado morto no gramado do ginásio, com marcas de estrangulamento. Também me disse que o perpetrador do ato covarde haverá de acertar as contas com Deus, que a justiça divina nunca falha.
Eu quis aquiescer – por ela, pelo Cinza, por mim, pelo Choco, pela tristeza que senti no momento. Não consegui. Disse a ela que era preferível tentar achar o culpado – os prédios têm muitas câmeras – do que esperar pela Retribuição do Criador. (Parei por aí. Se eu dissesse a ela o que penso sobre Deus, deuses, a natureza, o universo, era capaz de ela não me cumprimentar direito dali pra frente).
Às vezes me dá um pouco de raiva de não conseguir acreditar em Deus. Quando vejo o caixão de uma pessoa amada sendo enterrado, por exemplo. Mas quando eu soube do destino do Cinza senti algo inesperado, um desejo muito claro de que houvesse uma forma de divindade, uma forma bem definida de divindade: vingativa, feroz, com garras e presas afiadas, de olhos furiosos – um Deus-Gato, cuja função cósmica seria a de dilacerar eternamente a consciência dos que gratuitamente esvaziam o mundo de criaturas belas, os que se dão ao ignominioso prazer de exercer o poder de varrer da existência um ser mais fraco.