29 de julho de 2008

Construções, O Horror, O Horror


Conheci Juan Nieves Jr. neste mês de julho de 2008 e, no entanto, ele já está morto há quase 7 anos.

Sua morte faz aniversário no dia 11 de setembro.

Naquela terça-feira, no dia de sua morte, Juan acordou bem cedo como sempre, condicionado pela eternidade de 37 anos como trabalhador de restaurantes em Nova York. Durante 30 anos preparou saladas no Russian Tea Room - algo de que humildemente se orgulhava, pois havia adquirido o rótulo de especialista - e quando a direção do estabelecimento decidiu que o lugar deveria passar por uma "renovação", Juan se viu na rua. Para a sua sorte e de sua família, logo arranjou uma vaga no famoso Windows on the World, graças à sua especialidade, o que lhe garantiu o modesto salário de 7 dólares por hora. Quando morreu, seu salário já havia chegado a 12 dólares por hora, o que não deixava de ser uma tênue motivação pra pular da cama. Se ele soubesse que sua vida não passaria além daquela manhã, teria amado sua mulher como se fosse a última? Teria beijado cada filho seu como se fosse o único? Teria ido trabalhar com seu adorado Mustang ´67? Certamente. Mas como ele não sabia - ninguém pode saber, sinto que devo frisar ao leitor - Juan não fez nada disso. Saiu de casa com a quase certeza de voltar no fim do dia - da forma como todos fazemos, com quase certeza da volta - e atravessou a rua com seu passo tímido em direção à jornada pelo transporte público de Nova York, que o levava desde 1994 ao topo do mundo, o 107o. andar da Torre Norte do World Trade Center.

Da mesma maneira com que faz a todos, a rotina havia amortecido nele a capacidade de se maravilhar com o que havia se habituado a ver no caminho para o trabalho. A silhueta dos arranha-céus de Manhattan, especialmente a das Torres Gêmeas, há muito deixara de o impressionar, da mesma forma com que nós nos habituamos aos móveis da casa. Como um gorila que divisa as árvores que delimitam seu espaço, sentia familiaridade (e uma ponta de orgulho) ao ver os dois idênticos prodígios arquitetônicos que marcavam o horizonte. Everything in its right place, in its right place. Isso livrava sua mente para voar enquanto rumava para o trabalho, o que não quer dizer algo necessariamente prazeroso. É um prazer, certamente, sonhar acordado quando se é jovem e as janelas do mundo estão abertas, mas Juan tinha já seus 56 anos. À medida que sua vida se acelerava cada vez mais rapidamente, seus sonhos voltavam-se para o passado. Poderia ele, Juan, ter sido alguém diferente? Talvez um dos inúmeros engravatados que trabalhavam no WTC, com quem cruzava nos Sky Lobbies à espera de um elevador, quem sabe? Quem sabe tivesse sido até mesmo um daqueles CEOs que tomavam café da manhã olhando para Manhattan de seu lugar mais alto, como imperadores que avaliam seus domínios e o que ainda resta conquistar. Não, sua realidade lhe censurava algo tão inalcançável, tão diferente de sua vida, e costumeiramente descartava um sonho tão alto em favor de uma fantasia como corretor de seguros, por exemplo. Pensou que poderia ser o corretor ao seu lado no elevador (a rotina e a familiaridade também haviam lhe apagado a admiração que sentia nos primeiros tempos ao pensar em como aquelas máquinas poderiam subir dezenas de andares tão rapidamente). Logo olhou para o ascensorista e pensou que poderia ter sido ele. Sentiu uma inevitável compaixão por aquele homem, horas e horas dentro de uma caixa, subindo e descendo, esforçando-se em ser simpático, inventando papos pra puxar com desconhecidos. Enquanto deixava o elevador expresso, dirigiu uma despedida especialmente fraternal ao ascensorista. Sentiu enfim que tinha sorte de ser um preparador de saladas.

Era sorte mesmo, já que era um trabalho que exigia atenção mediana e Juan havia desenvolvido a habilidade necessária para executá-lo com a precisão de uma máquina. Sua mente ficava quase sempre livre para voar. Naquela terça-feira, Juan foi encarregado de preparar parte dos canapés que o Windows on the World serviria numa conferência sobre tecnologia da informação. Enquanto enchia meticulosamente uma bandeja de canapés, Juan perguntava-se o que diabos aquele pessoal tinha a dizer sobre tecnologias da informação. Seria sobre internet, algo com que ele, "burro velho", ainda não tinha se familiarizado? Um dia talvez a internet ligasse seres humanos habitando diferentes planetas, imaginou. Então, quando sua mente preparava-se para chegar a Vênus e sua mão caminhava em direção a mais um canapé, um evento inusitado trouxe bruscamente sua cabeça de volta ao corpo. Uma enorme explosão, um choque, o chão tremendo e o prédio balançando pra lá e pra cá como uma antena. Juan teve que se segurar na bancada para não perder o equilíbrio. Pratos caíram e quebraram no chão. O parco equilíbrio de suas pernas enviava seguidas informações para seu cérebro sentir medo, muito medo, e o cérebro respondia ao corpo com a respiração ofegante, o coração disparado, os olhos arregalados, a pele sentindo cada toque. Por alguns segundos Juan não era mais Juan, não tinha nome, era um animal querendo sobreviver. Separados pouco antes pelo torpor da rotina, corpo e alma eram agora uma coisa só.

Depois de alguns segundos o prédio parou de tremer e a confusão instalou-se no Windows on the World.

A fumaça imediatamente começou a aparecer, sinal de que a explosão dera origem a um incêndio. Mais de uma centena de pessoas no Windows on the World tentava descobrir informações sobre o que havia se passado. Logo, alguém soube que um avião grande havia se chocado com a Torre. Juan, agora altamente sensível, raciocinava sobre como é que uma máquina maravilhosa e tão dotada tecnologicamente como um avião poderia bater de maneira tão besta num prédio, e podia imaginar os horrores que se passavam andares debaixo dos pés dele. Enquanto a gerente do restaurante, agora com centenas de vidas sob sua batuta, tentava planejar uma evacuação, as condições se deterioravam rapidamente. A fumaça preenchia o ar cada vez mais rápido. E uma outra explosão, desta vez surda e sem os choques estruturais da primeira, só fez lembrar ao corpo de Juan o perigo de morte que corria. Estava sob um ataque proposital, soube logo depois por meio de um engravatado, que tanto podia ser um CEO quanto um alguém de posição irrelevante, tanto fazia naquele momento. Logo lhe veio à mente uma metáfora que lhe era cara: no fim do jogo, o rei e os peões voltam pra mesma caixa.

Para infortúnio de dois mil, oitocentos e tantos seres humanos, as torres teriam este mesmo destino.

A fumaça preencheu rapidamente o ambiente e o calor já fazia o chão começar a vergar. A esta altura, Juan e as outras cento e tantas pessoas que dividiam o espaço do Windows on the World com ele já tinham a informação de que não havia saída para baixo. Não se enxergava a mais de dois, três metros, e se respirava com dificuldade. As pessoas, já agora menos pessoas e mais animais sem nome, buscavam ar nas janelas quebradas, amontoando-se, dependurando-se para o lado de fora que dava para um precipício de 400 metros. Juan, ou aquele homem de meia idade, aquele ser vivo, também estava ali, lutando por seu espaço por ar. O calor já era insuportável. Se ficasse ali, iria cozinhar. Mas não havia para onde ir.

Nos especiais de televisão, em documentários, ouvem-se frases que devolvem a essas criaturas desesperadas um pouco de orgulho, auto-estima, autonomia, poder. Um ato de coragem, um último ato de controle sobre como se vai morrer: esta é a descrição comum. Dá-se ênfase especial ao caráter de decisão que acompanha o ato. As condições estavam tão "extremas", tão "inóspitas", que as pessoas decidiram pular. Elas decidiram, escolheram, dizem narradores em off, “especialistas”, testemunhas oculares, cinegrafistas. Todos, testemunhas e “especialistas”, animais amedrontados como Juan, como os outros 1300 presos nos últimos andares da Torre Norte, mas que não estavam lá no alto, e que não podem arriscar sentir o mesmo que as vítimas, ciosos que estão de suas identidades, daquilo que torna-os humanos, que os fazem pensar e dizer que têm alma e que não são passageiros de um mundo sem sentido numa viagem sem sentido. Recorrem a uma fantasia de controle e coragem das vítimas para não se jogarem eles próprios no vazio da não-existência.

Não há decisão, não há controle, não há escolha. Nem razão, pesos e contrapesos, prós e contras, should I stay or should I go. Mas também não há mero reflexo, um ato de susto que não passa por nenhum fio de pensamento. O ar fresco, o céu azul, as ruas minúsculas, tudo o que Juan podia imaginar lá fora parecia apenas ressoar profundamente na boca de seu estômago uma necessidade, um tem de ser assim!, pois faziam um contraste cruel com o fogo - que ele não via mas que era real demais (não precisava da imaginação para sentí-lo cozinhando as pernas) - e com a fumaça, que lhe preenchia a visão, os pulmões e o cérebro. E quando sentia este chamado surdo das ruas e a repelência eloqüente do Windows on the World, sentia atravessar-lhe a coluna vertebral uma onda de choque em direção à nuca que o fazia perder completamente a força do abdome, arquejando seu corpo, o pescoço dobrando involuntariamente, pendendo a cabeça para o lado, tremendo, quase no mesmo instante em que sentia a mesma onda refluir em direção ao intestino e à bexiga.

Não me sai da cabeça a imagem de Juan já dependurado na janela, o tronco inteiro pra fora do prédio. Mal conseguia segurar na coluna de aço que lhe queimava a palma da mão. Vejo cada linha de expressão de sua testa, franzida como nunca, e a vermelhidão dos olhos. Agora, Juan podia vislumbrar as ruas 400 metros lá embaixo, tomadas por luzes coloridas e sirenes estridentes. O formigueiro sempre inquieto agora estava em polvorosa, as ruas cheias de formigas confluindo para ajudar e salvar outras formigas. Para muitas, não haverá tempo.

Não me esqueço de Juan. Sua mente, sua alma, tenta se desprender do corpo, viajar para perto dos filhos, da mulher, do Mustang ´67 que comprou quando era novo, do sangue correndo pelo corpo quando o acelerou pela primeira vez. Acelerou o Mustang o suficiente? Amou o suficiente? Criou os filhos de maneira digna? Rende-se à última fantasia tentando resistir à inevitável tentação de ser apenas um animal desesperado, o que é, imagina-se acelerando o Mustang com sua família numa maravilhosa joy ride que nunca houve, e cai para uma última jornada solitária de 10 segundos.

3 comentários:

Vanessa disse...

O "tentar reviver" os últimos momentos desse homem é realmente de causar nó(S's) no estômago...

E a vida que ficou? Lá atrás...
o sorriso desprezado do filho, o "bom dia" mal escutado, o beijo esquivado, o banho mal tomado, o tempo perdido...
Perdido mesmo, pois agora não mais o tinha!

Dan, maravilhoso demais seu texto. De uma sensibilidade estética fascinante!

Anônimo disse...

Difícil falar do texto...são sentimentos contrários...
Um crítico: mas um texto querendo enfatizar o quanto o povo americano sofreu com o ataque... e outro profundamente reflexivo: parecendo um carpem diem,ou seja, viva o momento, o presente pois vc não sabe se ele será o úlitmo..quantas coisas deixamos de fazer em um dia? Quantos sorrisos, gestos, palavras deixam de ser ditas pois erroneamente pensamos ter o resto da vida? E quanto é o resto da vida? Juan pode ser eu, vc ou qualquer outro....

Anônimo disse...

Difícil falar do texto...são sentimentos contrários...
Um crítico: mas um texto querendo enfatizar o quanto o povo americano sofreu com o ataque... e outro profundamente reflexivo: parecendo um carpem diem,ou seja, viva o momento, o presente pois vc não sabe se ele será o úlitmo..quantas coisas deixamos de fazer em um dia? Quantos sorrisos, gestos, palavras deixam de ser ditas pois erroneamente pensamos ter o resto da vida? E quanto é o resto da vida? Juan pode ser eu, vc ou qualquer outro....

De onde você vem?