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O jornalismo e as bruxas
Por Danilo Albergaria em 28/08/2012 na edição 709
O site de cobertura jornalística de automobilismo da agência de notícias Warm Up, Grande Prêmio, atualmente vinculado à página brasileira do MSN, é o melhor do Brasil quando o assunto é corrida a motor. Em março de 2010, a Warm Up estreou uma revista homônima sobre automobilismo, veiculada online. A publicação é umbilicalmente ligada ao Grande Prêmio, que a promove com chamadas para suas reportagens.
De propriedade do experiente jornalista Flávio Gomes, desde seu surgimento em meados dos anos 1990 a agência tem primado por oferecer um jornalismo de qualidade, sério, competente no tratamento da informação, sem apelar para o ufanismo nacionalista tão comum no jornalismo esportivo, nem fazer uso de sensacionalismo barato. É de se estranhar, pois, que a revista Warm Up tenha veiculado em sua última edição uma reportagem inexplicavelmente apelativa e sensacionalista, jogando pela janela uma das funções sociais primordiais do jornalismo: oferecer informação de qualidade aos leitores. O leitor poderá ver por si mesmo a chamada do site – cuja manchete é “Brasileira é chamada para impedir chuva na Fórmula 1” – e a própria reportagem, “Dançando contra chuva”, assinada por Fagner Morais, que começa na página 28 da edição de número 28 da revista online.
A fonte manda
O texto fala sobre as alegadas participações da famigerada Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) em eventos de grande porte, boa parte deles esportivos. Sabe-se lá se contratada oficialmente ou não pelos organizadores ou por sabe-se lá quem (a reportagem não informa), a médium Adelaide Scritori, presidente da FCCC, afirma incorporar um espírito poderoso para alterar o clima e evitar ou redirecionar chuvas em benefício de eventos como concertos de rock e corridas de automóveis. Não qualquer concerto ou qualquer corrida, diga-se, mas apenas os que envolvem uma grande quantidade de dinheiro ou atenção midiática.
A reportagem até tenta mostrar bom humor, mas descamba para o mau jornalismo. O texto é no mínimo descuidado com as afirmações que faz. Exemplo: o leitor é informado que pode até não conhecer a médium, mas que “com certeza, já viu de longe ou esteve presente em algum evento em que ela ajudou a ter sucesso” (grifo meu). Também afirma que Adelaide ganhou “inúmeros admiradores famosos, como os ex-primeiros-ministros Margaret Thatcher e Tony Blair”. Segundo a Warm Up, Blair e Thatcher “recorreram ao trabalho da médium e viram sucesso” (grifo meu). Em legenda, consta: “Além dos eventos esportivos, a FCCC também colaborou para a edição sem chuva do Rock in Rio Lisboa” (grifo meu). É a revista quem diz, nada até agora em aspas, saindo da boca da própria Adelaide ou de seu assessor.
A partir daí é o livre desfile do pior nonsense esotérico nas generosas aspas concedidas à autoproclamada médium. Além disso, a citação das declarações de Adelaide não é feita de maneira cuidadosa, sem o correto distanciamento do que diz a reportagem com o que diz a fonte. A certa altura, por exemplo, a Warm Up lembra que a chuva, esperada pelas previsões do tempo das equipes no Grande Prêmio de Mônaco de Fórmula 1 de 2012, só caiu com força após o final da prova. Antes de conceder a palavra a Adelaide, a matéria anuncia: “Adelaide explicacomo fez para impedir isso” (grifo meu).
O que é isso senão um exemplo de jornalismo irresponsável? A Warm Up passa muito longe de questionar as alegações absurdas de uma única fonte, a própria FCCC, obviamente interessada em propagar de si mesma uma imagem de sucesso. É claro que as alegações sobrenaturais da FCCC são nada mais que besteirol. Mas o que se questiona, aqui, não é apenas se é sadio acreditar e promover uma patacoada dessas – não é, e isso está fora de discussão.
Do ponto de vista jornalístico, o que compromete a reportagem é a sua completa dependência por uma única fonte, a FCCC. Tudo o que se diz no texto – as alegações de fama internacional, de relações com governantes estrangeiros, de trabalho em grandes eventos esportivos, da F-1 às Olimpíadas – tudo vem da boca da médium ou de seu assessor. Quem não verifica as alegações da fonte acaba sendo cavalgado pela própria fonte. A única exceção é o parágrafo em que é citada uma reportagem de 2007 da revista IstoÉ sobre a FCCC. Desesperadamente marcada pela credulidade, pelo mau jornalismo, pelo único e exclusivo embasamento em evidências anedóticas, a matéria da IstoÉ tem suas alegações fantásticas citadas pela Warm Up, novamente sem questionamento.
Seres fantásticos...
Seria possível resolver esse problema afirmando que a reportagem não é séria ou que não se deve levá-la a sério? É o que sugeriu Flávio Gomes, proprietário da agência, por e-mail: “A reportagem é apenas uma curiosidade. Não passa disso. Não merece tantas restrições”. Em contato pelo e-mail oficial da revista, procurei questionar o repórter e o editor-chefe, Victor Martins. Apenas este último respondeu, e de maneira bastante confusa. Ao mesmo tempo em que faz coro a Gomes, afirmando que “você [eu] levou a sério demais uma reportagem que não dá em nenhum momento poderes divinos à personagem”, Martins pareceu levar suficientemente a sério os absurdos mágicos veiculados pela reportagem, afirmando que “uma série de pessoas gostou bastante [da reportagem] – jornalistas como nós. Porque justamente envolve questões espirituais. Você parte provavelmente do princípio que é balela; eu, de um ponto de vista pessoal, não”.
Seria fácil concordar com Gomes, e estas críticas que escrevo sequer existiriam, se a revistaWarm Up não houvesse levado tão a sério as alegações fantásticas da FCCC. Textualmente, está lá, escrito para todos lerem, que a manipulação mágica da natureza por uma médium deu certo, teve sucesso, e mais de uma vez. Não é uma simples brincadeira dúbia com uma entidade notoriamente envolvida na exploração da credulidade alheia para amealhar vantagens pessoais para os seus dirigentes. Não é apenas uma peça bem-humorada acerca de detalhes pitorescos do mundo empresarial por trás de grandes eventos, ávido pelo lucro a ponto de apostar na magia, no sobrenatural – mediante serviços bem pagos a “especialistas” da área como a FCCC. É uma peça de desinformação, simplesmente.
É trágico que o jornalismo se preste a esse triste papel. Pois não é nenhuma brincadeira para a vida pública que políticos e governantes como César Maia e Eduardo Paes apostem na magia e no sobrenatural. Maia estabeleceu, e Paes renovou em 2010, um convênio do município do Rio de Janeiro com a FCCC. Estamos tratando de uma organização que espalha alegações absurdas para conseguir dinheiro fácil, em convênio com a máquina pública.
O mote da reportagem da Warm Up é o velho “não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. E existem, mesmo. Enquanto o jornalismo se prestar à desinformação, as bruxas e toda sorte de seres fantásticos continuarão existindo muito bem, aproveitando o que há do bom e do melhor nesse mundo, com o dinheiro da credulidade alheia.