29 de março de 2019

Cantiga de amigo

Woke up this morning singing an old, old Beatles song.

Lembro de palavras, mas não de quais eram, exatamente. Quando penso nelas, nas palavras, elas me escapam. O que não me escapa, o que me perfura o pâncreas e me causa a ressaca de uma noite extática, é a anatomia da cena. A voz. Os dedos agarrando a capa do livro. Os dedos. As cutículas. As unhas. As linhas da pele daquelas mãos. As veias daquelas mãos. A textura daquela pele que cobre aquelas veias. Os olhos perseguindo as palavras. As pupilas pretas. Os verdes circundantes. As sobrancelhas que dançam ao ritmo das palavras das quais não me lembro. O nariz. A boca. As linhas de expressão da boca e dos olhos. Os sons que saem da boca. Into my arms, oh Lord, into my arms.

Sinto que o mês presente me assassina. Soltar um foguete e encher o céu de balão. E ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos. Me mentiu jurando amor que não tem fim. O zóio da cobra verde. Hoje foi que arreparei. Eis o tempo dos assassinos. Bandeira branca enfiada em pau forte.

Algumas palavras me vêm. E me matam.

Vem, amiga, e conte uma coisa linda pra mim. Pode ser qualquer texto, qualquer poesia, qualquer sequência numérica. Leia para mim uma bula de Lexotan, meu amor. Leia para mim o manual da impressora. A fatura da CPFL. Leia. Decodifique algo para mim. Faça passar um registro escrito qualquer pelos seus olhos, pelo seu cérebro, pelo seu sangue. Transforme-o na voz, a sua voz. Perturbe o ar. Acaricie meus tímpanos. Faça das minhas sinapses os seus fantoches. Quero respirar fundo, minha amiga, mulher. Quero ser eu mesmo. Nu. Amado. Pleno. Escolhido.

Banhado pela luz da sua voz em madrugadas eternas eu nunca morro. Ali eu nunca morro.

Uma cena em pedra. Uma Pompéia só nossa. A vida ao redor é a velha morte de sempre.

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