Eu não entendia porque se dizia que a Fórmula 1 era um esporte perigoso. Desde que havia começado a assistir as corridas, por volta de 86, 87, nenhum piloto sequer havia morrido. Elio de Angelis morreu num teste em Paul Ricard, pela Brabham, em 86, mas era só um teste. E era só Elio de Angelis. Era assim que eu pensava. Brutal, é verdade. Era só o Elio de Angelis.
Pois bem, todo mundo sabe o que aconteceu nos treinos do GP de San Marino de 1994, que ocorria na Itália (me lembro que fiquei espantado quando soube que Imola não ficava em San Marino porra nenhuma). Roland Ratzenberger, que corria por uma equipe nanica chamada Simtek - um carro roxo lindo e lento, o que o tornava feio e desinteressante - morreu quando bateu a trezentos por hora no muro da Villeneuve. Como havia levantado tarde naquele sábado, fiquei sabendo da morte do piloto pelo meu pai, no caminho para o Supertuba, um supermercado, que ficava a duas quadras. Mas o Senna conseguiu a pole? Sim, Senna na pole. Ah, então, tudo bem.
Encontrei minha vó e minha tia no Supertuba, que quando foram informadas da morte do ilustre desconhecido fizeram uma cara de tristeza e choque - afinal era um jovem que morreu praticando esporte, uma morte trágica. Eu me lembro de ter tentado simular a mesma tristeza. É uma convenção social que eu entendia muito bem, expressar a tristeza diante da morte, especialmente uma morte trágica. Fique triste, Danilo, um piloto morreu, pensava. E o Senna? Ficou com a pole, Vó. Era só o Ratzenberger, afinal.
Terremoto, só em São Francisco. Tragédias, só ali, não aqui. Com os outros, bem longe daqui.
Levantei cedo no domingo, como sempre fazia, como milhões de outros fiéis a postos para o culto da grande religião televisiva dos automóveis que ficam correndo em voltas seguidas pra não sair do lugar. Quando o Senna bateu - "Senna bateu forte!", berrou o Galvão - fui tomado de uma tristeza abissal. Aquela Williams desmantelando ao vivo, quase voltando pra pista pra descansar finalmente na área de escape, significava uma única coisa: Schumacher vai vencer de novo, Senna sem pontuar de novo, 30 a 0. E agora? Como é que Senna vai ser campeão no ano em que era pra ganhar todas as corridas? Duvido que algum sennista fanático tenha pensado diferente. Acidentes mais feios, o próprio Ayrton já tinha sofrido. Se você torcia pelo Senna como eu, você imediatamente pensou: fodeu, já era, acabou. 30 a 0 é a morte. 30 a 0 é adeus. Que tristeza.
Mas o cara não se mexia. O cara não saía do carro. Meu pai, já com seus quase 40 anos nas costas, ajudava na denegação do possível, que se transformava cada vez mais em provável: "ele mexeu a cabeça, está fazendo cera pra parar a corrida". Tomara que pare, tomara que cancele: Schumacher não vence, o campeonato se mantém vivo.
Quando o que passou a estar em jogo não era o campeonato e os 30 a 0, quando a morte começou a parecer possível, depois provável, depois certa, o terremoto não rachou apenas a Golden Gate, mas o teto do nosso sobrado. Aconteceu aqui, não ali. A morte existe, afinal. E agora?
Agora que Ratzenberger não era apenas Ratzenberger; Elio de Angelis não era apenas Elio de Angelis. A resposta, um tanto otimista, achei enquanto escrevia esse texto. Se não é genial, nem profunda, não é também uma mera tautologia. Me permitiu um título menos clichê para a efeméride e me deu a oportunidade de achar e me emocionar com essa bela foto, do pianista de Angelis. Ninguém é só alguém, mesmo.
Fotos:
1. Roland Ratzenberger, 1994.
2. Ayrton Senna e Elio de Angelis, 1985, companheiros de Lotus.
3. Elio de Angelis, 1986.
Um comentário:
É uma porrada quando percebemos verdadeiramente a fragilidade da vida.
Ninguém é só alguém, o universo de cada um é muitíssimo profundo para ser só mais 'um alguém'.
Se formos observar de muito longe, somos somente mais um mesmo, mas a raridade disso é poética.
Mas ainda prefiro me afundar no mundo de cada um.
Besitos nas crunchinhas
=*
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