A história é deliciosa e a música, melhor ainda.
Ranulfus, do PQP Bach, conta a história da sonata para violino número 9, conhecida injustamente como Sonata a Kreutzer (até Tolstói escreveu inspirado por ela e deu ao seu livro o mesmo injusto, mas popular, nome). A peça é resultado do encontro musical e etílico entre um Beethoven ainda mais ou menos jovem e a improvável figura do violinista virtuose George Bridgetower, um mestiço com um pé nas cortes européias e outro na escravidão negra do Caribe:
Aos 25 anos, em licença, George chega a Viena, onde Beethoven, com 33, já pontificava. A amizade parece ter sido imediata, informal e entusiástica: Beethoven retoma alguns esboços, e em uma semana conclui a nona e mais importante das suas sonatas para violino e piano. Vão estreá-la juntos em 25/05/1803, com Bridgetower – acreditem ou não – tocando boa parte à primeira vista, e ainda lendo por sobre o ombro do compositor, pois nem tinha havido tempo para copiar a parte do violino.
Mas o melhor da história vem no segundo movimento, quando o piano reapresentava sozinho uma idéia exposta antes pelo violino – e Bridgetower ousou improvisar comentários uma oitava acima em vez de aguardar. Beethoven teria saltado do piano e… ao contrário do que se poderia esperar do seu gênio, teria abraçado o violinista com palavras que se traduzem perfeitamente por “Mais, camaradinha, mais!” – o que me faz perguntar: terá sido essa a primeira jam session da história?
Que o clima era de divertimento, atesta-o também o título que aparece no manuscrito original: nada menos que “Sonata mulattica, composta per il mulatto Brischdauer [grafia jocosa do nome], gran pazzo [grande maluco] e conpositore mulattico” – havendo referência ainda à anotação “Sonata per un mulattico lunatico”.
Tão informal, porém… que segundo um relato da época os dois teriam comemorado a estréia com uma bebedeira homérica, no meio da qual Beethoven teria se dado por ofendido por uma observação de Bridgetower sobre determinada mulher… A amizade teria terminado aí, e seria por isso que pouco tempo depois Beethoven enviou a sonata com dedicatória ao francês Rodolphe Kreutzer, violinista mais famoso da época.
Outros veem uma razão mais pragmática: com brigas ou não, Beethoven planejava uma temporada em Paris e pensou que dedicar a sonata a Kreutzer podia ajudar no projeto. O fato é que a viagem não se concretizou, e Kreutzer, por sua vez, apenas passou os olhos e disse que a obra era um nonsense inexecutável, e que de resto não lhe interessava porque ‘nem era virgem’ (a expressão é minha)… Nunca tocou a peça que imortalizou seu nome injustamente, enquanto o de Bridgetower só recentemente vem sendo recuperado.
Um bundão, enfim, o tal de Kreutzer. E gran pazzo, o Bridgetower.
Mas vamos ao que realmente interessa.
A música é simplesmente irresistível; pega o teu ouvido de primeira e não larga mais. Abaixo, ei-la completa nas mãos da grande pianista Martha Argerich e do violinista Gidon Kremer.
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