Há um certo tempo, um amigo me disse que eu havia caído numa espiral de representações (devida principalmente à atenção dispensada a Schopenhauer) em que passei a negligenciar a discussão sobre aquilo que de fato existe. "A Lua está lá", ele me disse, para me lembrar que a Lua existe e, de fato, está lá. Analogamente a alguns acadêmicos com quem tive contato, que entoavam um lema positivista: "o real existe".
Nada mais ingênuo. Parafraseando a insígne filósofa norte-americana Shirley MacLaine, digo ao meu amigo: "prove que VOCÊ existe. Eu poderia estar imaginando você neste momento. Você pode ser uma ilusão perpetrada pelo meu sistema nervoso, ou melhor, pelo meu espírito."
A recente leitura de certas obras-chave do que há de melhor no pensamento de fins do século XX acerca do "real" e suas representações me impulsionaram na direção de uma opinião diametralmente oposta: o real é uma ilusão, não existe por si. O mundo exterior é uma construção do sistema nervoso (este também uma representação, não algo que existe objetivamente) que capta os estímulos sensoriais de acordo com uma teia engendrada pelo arcabouço cultural do indivíduo, bem como pelas estruturas sociais de que este participa. O "real" é determinado, ou melhor, a ilusão de sua existência é determinada, portanto, pelo locus de cada sujeito discursivo. Tinha razão Michel Foucault quando chamou a atenção para a necessidade de reativar os denominados "saberes locais" em detrimento do saber unívoco e centralizador da ciência. Neste sentido, Gilles Deleuze e Félix Guattari intuiram, genialmente e de maneira sucinta e clara, que:
"[...] não existe nenhuma correspondência biunívoca entre elos lineares significantes ou de arquiescritura, que dependa do autor, e esta catálise maquínica
multirreferencial, multidimensional. A simetria da escala, a transversalidade, o
caráter pático não-discursivo de sua expansão: todas essas dimensões nos removem da lógica do meio excluído e nos fortalecem em nossa renúncia ao binarismo ontológico que havíamos criticado previamente. [...] A relatividade ontológica aqui defendida é inseparável de uma relatividade enunciativa. O conhecimento de um Universo (em um sentido astrofísico ou axiológico) somente é possível por intermédio de máquinas autopoiéticas. Convém que uma zona de autopertinência exista em algum lugar para que possa chegar à existência cognitiva qualquer ser ou qualquer modalidade de ser. Fora desta acoplagem máquina/Universo, os seres têm apenas o status de entidade virtual. [...] Fora deste ponto de vista particularizado, o restante do Universo só existe (no sentido em que é entendida a existência aqui-embaixo) através da virtualidade da existência de outras máquinas autopoiéticas no seio de outras biomecanosferas dispersas pelo cosmos. A relatividade de pontos de vista de espaço, de tempo e de energia não absorvem, por tudo isso, o real no sonho."
As contraposições ingênuas entre realidade e ficção, real e virtual, verdadeiro e falso, não resistem a esta claríssima e brilhante exposição de dois dos principais filósofos franceses fin-de-siècle. Àqueles que ainda se negam a enxergar o óbvio, não custa nada lembrar a grande Luce Irigaray e sua portentosa demonstração da incapacidade da ciência em atingir o "real" (posto que este não existe em si mesmo) e sua essencial subjetividade que, no caso que segue, se traduz em sexismo:
"Enquanto o homem possui órgão sexual que se projeta e se torna rijo, a mulher tem abertura que deixa sair o sangue menstrual e os fluidos vaginais. [...] É a rigidez do órgão masculino que conta, não sua cumplicidade no fluxo do fluido. Essas idealizações estão reinscritas na matemática, que concebe fluidos como planos laminados e outras formas sólidas modificadas. Da mesma forma que a
mulher é suprimida das teorias e da linguagem machista, existindo apenas como não-homem, os fluidos foram suprimidos das ciências, existindo somente como não-sólidos. Desta perspectiva, não é surpresa que a ciência não tenha sido capaz de chegar a um modelo bem-sucedido para a turbulência. O problema do fluxo turbulento não pode ser resolvido porque as concepções sobre fluidos (e sobre a mulher) foram assim formuladas de modo a deixar restos necessariamente desarticulados."
Desmascarada de suas fascistas tentativas de se passar por conhecimento objetivo que visa desvendar o "real" (insisto nas aspas), a ciência se vê acuada e responde com bombas atômicas e o aquecimento global. É chegada a hora, portanto, de romper com as amarras do positivismo e pleitear a substituição do triunfalista discurso científico empírico-racionalista ocidental judaico-cristão por uma nova ciência pós-moderna, uma ciência poética, que circunscreve o "real" como tal, qual seja, uma mera ilusão construída de maneira muitas vezes sórdida que busca a (re)significação do ser humano enquanto pilha alcalina do sistema capitalista internacional. Como profetizou Julia Kristeva:
"Nesta "potência do continuum" do zero ao dobro especificamente poético, percebe-se que "a proibição" (linguística, psíquica e social) é o 1 (Deus, a lei, a definição), e que a única prática linguística que "escapa" a esta proibição é o discurso poético."
6 comentários:
Realmente é incrível que essa "verdade" passe por nossos neurotransmissores e - simplesmente - formem idéias à cerca de visões de possíveis realidades.
"A realidade está - tão somente - nos olhos de quem a vê", já dizia Angela Summers , "portanto uma grande ilusão". Ou seja, fruto dos sentidos.
Difícil de acreditar que nossas mentes sejam verdadeiras máquinas reprodutoras de imagens. E com uma única finalidade: a de satisfazer nossos sentidos
E blá, bjá, blá...
Trocadilho de palavras , rapsodia de frases, puzzle de idéias.
Tudo vale.
Se desejar, inverta a ordem dos parágrafos, afinal, mon chérie, "a ordem dos fatores não altera o resultado"
No final tudo é uma coisa só.
Há!
Confesso que tive que ler o post duas vezes para entendê-lo, huahuahua.
Brincadeiras à parte, eu digo: eu nasci, cresci, estudei, e, atualmente dou aula pra cerca de 400 alunos. Eles me vêm semanalmente e em alguns casos diariamente. Isso já prova que eu existo. Como eu existo na cabeça de cada um deles, já é outra história. Talvez, nessa perspectiva eu de fato não exista mesmo. O Sasqua que você conhece pode não existir de fato, assim como o Sherpa que eu conheço, que eu descrevo para as pessoas. Mas, se por acaso em morrer amanhã, ou daqui a pouco, (quem pode saber?) o Sherpa que a Vanessa conhece, ou que o LF ou o Enéias conhecem, continuará existindo. Claro, você pode argumentar que nada é tão positisita ou ingênuo quanto esse discurso. Mas é assim que eu vejo as coisas. Talvez por desconhecimento, talvez por pura resistência, não sou exatamente um entusiasta do pós-modernismo. tenho imensa dificuldade em abandonar certos resquícios do positismo. Embora não seja, de fato, positivista. Aliás, sim, já está na hora de acabar com a ciência das verdades absolutas, de abrir espaço para algo mais poético e livre. De seguir o conselho de Foucault e descentralizar a coisa toda.
Essa discussão me lembra uma passagem de um livro do Dawkins, não me lembro agora se o "deus, um delírio" ou se " O rio que saía do Éden", na qual ele usa uma explicação darwinista para explicar por que apesar de sermos compostos de uma grande quantidade de vazio (se é que "vazio" pode ser tratado como algo quantificável). Resumindo, o argumento girava em torno do fato de nossos órgãos terem evoluido com a finalidade de garantir a nossa sobrevivência, enquanto espécie e, consequentemente, a reprodução de nossos genes. Nossos olhos não precisam perceber todos esses espaços. Para nosso sucesso no planeta, basta que vejamos as coisas com a textura com as quais as vemos. Não podemos atravessar uma parede, em CNTP, para fazer uma piadinha de químico, devido às forças de intereção entre as partículas que nos compõe. De fato, não somos sólidos, apesar da ilusão causada pelos nossos sentidos.
"Difícil de acreditar que nossas mentes sejam verdadeiras máquinas reprodutoras de imagens. E com uma única finalidade: a de satisfazer nossos sentidos". É exatamente isso que a Vanessa disse. Minha resistência, e você pode até chamar isso de ingenuidade, está no fato de que eu acredito que, independente de como as percebamos, ou de quais representações subjetivas façamos delas, as particulas estão lá. Voltando à lua: inúmeros olhares são possíveis. Poéticos, científicos, românticos, sexuais ou mesmo científico-poético-romantico-sexuais. Mas mesmo que a humanidade seja extinta, e portando nenhuma representação humana seja possível, ainda assim ela vai continuar lá, influenciando as marés. Sim, tenho problemas para abandonar certas concepções.
Na minha concepção, ainda marcada pela crença inabalável no real, o assunto pode ser visto nos seguintes termos: 1)a realidade sensível, ou seja, aquilo que vemos, sentimos, consideramos conhecimento e aceitamos como verdades, não passam de representações subjetivas, determinada pelo "locus" de cada sujeito discursivo, usando suas próprias palavras. 2)Isso implica na inexistência de uma realidade absoluta, no sentido de uma verdade absoluta a que todos estão submetidos. 3) Isso não implica, no entanto, na inexistência de uma realidade, sem aspas mesmo, que seja externa à existência humana; antes de conhecer você, eu já existia. Meus pais podem comprovar (minha mãe mais especificamente, já que eu saí do meio das pernas dela). 4) É correto dizermos que o mundo no qual vivemos depende de como imaginamos, representamos, depositamos expectativas e adquirimos crenças; mas é incorreto dizermos que a existência do universo depende de nós. O termo "Cambriano" foi cunhado por nós. Mas a explosão da vida que ocorreu nesse período existiu, pelo menos até que os indícios provem o contrário, independente da inexistência de uma consciência humana para fazer representações.
Pode soar irritantemente positivista, mas faz sentido para mim. Se " O mundo exterior é uma construção do sistema nervoso (este também uma representação, não algo que existe objetivamente) que capta os estímulos sensoriais", é por que ALGUMA COISA estimulou OUTRA COISA, que convencionamos chamar de sistema nervoso. Simplista, mas, para mim, convincente.
De qualquer forma, tomar uma cerveja com os amigos é uma representação assaz aprazível, como dizem por aí. Pouco me importa se o real existe ou não. Minha representação subjetiva determinada pelo meu locus enquanto sujeito discursivo, seja lá o que tudo isso signifique, me diz que eu preciso sair mais para beber....
"Prove que vc existe, Sasqua"
Vc perguntaria isso pra algu�m que n�o existe?
Huahuahauhau
Sasqua, por favor, também não me leve tão a sério.
Aliás, caso deseje saber mais da obra fantástica(e vasta, por sinal) de Angela Summers, é só entrar no site da Buttman. Grande mulher!
Calma, é só 1º de Abril!
Huahuahua
Pois é...não estudei a Angela Summers tão "a fundo", huahuahua.
É incrível como essas coisas mexem com a gente: cada vez que eu leio o texto eu fico mais impressionado por eu ter caído em tamanho monte de absurdos. Mas caí. No fim, foi bom. Esclarecedor, eu diria.
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