10 de julho de 2007

A Bruxa de Kepler


No ano de 1577, um grande cometa apareceu nos céus. Dentre as incontáveis e no mínimo intrigadas pessoas que o observaram, uma mulher e seu filho, Johannes Kepler, então com seis anos de idade, contemplavam-no do alto de uma colina próxima à pequena cidade alemã de Weil der Stadt.

Um cometa, nos diz a atual astronomia, é um pequeno corpo composto de gelo e rochas que orbita o Sol em trajetória elíptica e, quando dentro da região em que orbitam os quatro planetas mais próximos da estrela – a Terra é um deles –, exibe aos observadores terrestres uma cauda de poeira e gases. Seu formato e aparição peculiares geraram, como se pode esperar, inúmeras interpretações nas mais variadas culturas. O cometa de 1577 foi associado, na Escócia, a uma grande batalha e três reis mortos. O que quer que Kepler e sua mãe pensaram enquanto observavam o misterioso astro, provavelmente estava bem longe da representação astronômica atual. E, no entanto, a moderna astronomia deve muito a Kepler.

Entre muitas outras realizações caras à ciência atual, Johannes Kepler foi, talvez tanto quanto Galileu Galilei, decisivo para a vitória do copernicanismo, o conjunto de idéias que tirou a Terra do centro do Universo para colocá-la girando em torno do Sol. Kepler criou uma explicação para o movimento dos planetas no sistema solar fixando as bases para que, muitos anos mais tarde, Isaac Newton desenvolvesse a teoria da gravitação universal. Enquanto elaborava essa explicação, enunciada pelas famosas Três Leis que levam seu nome, Kepler sofreu com perseguições religiosas, a morte de vários filhos, e se viu envolvido na elaboração da defesa judicial de sua mãe, Katharina, acusada de bruxaria.

As realizações intelectuais de Kepler sendo influenciadas e mesmo respondendo à cultura de seu tempo e às vicissitudes e tragédias de sua vida é o tema de A Bruxa de Kepler: a descoberta da ordem cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e julgamento por heresia de sua mãe, de James A. Connor. O autor é um professor universitário em Nova Jersey cuja ampla formação inclui geociência, filosofia, teologia e literatura. O fato de Connor ter sido no passado um padre jesuíta pode ajudar a entender a amplitude de sua formação, que se reflete na própria abordagem da obra. No entanto, em que pese o fato de ser uma obra de difícil definição, dado seu amplo e múltiplo caráter, pode-se dizer que A Bruxa de Kepler é um livro de história da ciência.

Um dos grandes méritos do livro reside no esforço de Connor em penetrar a fundo nas duas principais cosmologias conflitantes dos séculos 16 e 17. O universo aristotélico, principalmente, ganha em A Bruxa de Kepler uma visão mais "de dentro", o que nos permite enxergar os motivos do profundo enraizamento do modelo geocêntrico na cultura européia do início do período moderno. Há passagens surpreendentes que subvertem o senso comum sobre o universo aristotélico. Para quem está acostumado a pensar no heliocentrismo como mais um passo rumo às grandes humilhações que revelaram a insignificância de nossa existência, não deixa de ser espantoso o seguinte trecho:

Aristóteles jamais pensou na Terra como um lugar especial ou a menina dos olhos de alguém. A Terra ocupava a posição mais baixa no cosmo, onde tudo que era caótico e tudo que era corruptível no fim se assentava. O mundo sob a esfera da Lua era a privada do universo, onde os seres vivos nasciam e depois morriam, onde mais cedo ou mais tarde toda a vida retornava para apodrecer. Só os céus eram eternos; só os céus eram divinos. A redefinição da Terra como um planeta, como fez Copérnico, na verdade a colocou nas esferas celestes junto com outros planetas e elevou os valores de propriedade ao redor.

Resta a ressalva de que Connor não é louco de tentar reabilitar o cosmos aristotélico. Faz questão de ressaltar aquilo que todo mundo sabe: Aristóteles pode não ter dado um status muito privilegiado para a Terra mesmo, mas para os cristãos a Terra era o lugar onde o próprio filho de Deus, o Criador, havia vivido como um reles ser humano, um simples mortal, a fim de salvar a humanidade. A humanidade e, por conseqüência, a Terra, tinham um lugar muito privilegiado no cosmo cristão. Colocá-la num sistema ocupando um lugar e a função de outros astros mais ou menos parecidos (os planetas) rompia radicalmente com esse privilégio.

Além da discussão cosmológica de fundo, o leitor poderá encontrar na obra análises minuciosas sobre as idéias de Kepler e aquelas com que ele se deparou ao construir suas explicações astronômicas. Além disso, um dos objetivos de Connor é contextualizar os feitos de Kepler que passaram à posteridade como científicos. Apresentá-los em meio à relação entre o astrônomo e a realidade à sua volta. Realidade que, obviamente, não se resume apenas aos colegas de profissão, estudiosos, livros e cálculos matemáticos. Numa complexa trama, ciência, política, religião, idéias, técnicas, doenças, sexo, dores e perdas, entrelaçam-se para forjar o sujeito histórico que ajudou a impulsionar uma mudança radical na visão humana do universo. As leis de Kepler referem-se aos céus, mas não são celestiais.

Um comentário:

J.Paulo disse...

Interessante resenha; incuti vontade de ler o livro ao leitor. Livro esse que parece mesmo ser interessante e muito bem escrito. Kepler foi um homem extraordinário, deu também grande contribuição ao estudo da Óptica.

Abraços.

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