Mais uma vez, o distanciamento é a ferramenta para entender quê raios estamos fazendo aqui, nesse mundo, nesse cosmos, vivendo e morrendo. Com vocês, Arthur Schopenhauer, em trecho de "Da Morte", um capítulo do clássico "O Mundo como Vontade e Representação". É um texto que pede para ser saboreado lentamente.
Não há maior contraste do que aquele entre a fuga irresistível do tempo, que arrasta consigo todo o seu conteúdo, e a imobilidade rígida da realidade existente, sempre única e a mesma em todos os tempos. E se, desse ponto de vista, vemos bem objetivamente os acontecimentos imediatos da vida, o Nunc Stans* nos aparecerá visível e claro no centro da roda do tempo. - Para um olho que vivesse incomparavelmente mais e fosse capaz de abarcar o gênero humano em toda a sua duração, num só olhar, a sucessão contínua de nascimento e morte se manifestaria apenas como uma vibração incessante: não lhe ocorreria ver aí um devir perpétuo vindo do nada e para o nada; mas, assim como para o nosso olhar a faísca, em uma rotação muito rápida, tem para nós o efeito de círculo imóvel, do mesmo modo a mola, vibrada rapidamente, como um triângulo fixo, e a corda que oscila, um fuso, assim também a espécie lhe apareceria como a realidade existente e permanente, e a morte e o nascimento, como vibrações.
* Essa expressão em latim refere-se a um "presente eterno", ou um momento presente que não se articula temporalmente, no qual não há distinção entre o agora, o antes e o depois.
Agora, a distância pode ser aplicada como um antídoto para as máscaras humanas. Trecho chave de "Metafísica do Amor":
Toda paixão, com efeito, por mais etérea que possa parecer, na verdade enraíza-se tão-somente no instinto natural dos sexos; e nada mais é que um impulso sexual perfeitamente determinado e individualizado. Assim, não perdendo isso de vista, se considerarmos o papel importante que o impulso sexual representa em todas as suas fases e graus, não apenas nas comédias e romances, mas também no mundo real, onde é, junto com o amor pela vida, a mais poderosa e a mais ativa de todas as molas propulsoras, e se pensarmos que absorve continuamente as forças da porção mais jovem da humanidade, que é a finalidade última de quase todo o esforço humano, que exerce influência perturbadora nos negócios mais importantes, que interrompe a todo momento as mais sérias ocupações, que por vezes deixa em confusão os maiores espíritos, que não tem escrúpulo em atrapalhar com suas frivolidades as negociações diplomáticas e os trabalhos do sábios, que chega até a introduzir os seus bilhetinhos meigos e os seus cachinhos de cabelos nas pastas dos ministros e nos manuscritos dos filósofos, urdindo, todos os dias, as piores e mais intrincadas disputas, que rompe as mais preciosas relações, desfaz os mais sólidos laços, torna vítima a vida, às vezes a saúde, riqueza, situação e felicidade, e faz do homem honesto um homem sem honra, do leal um traidor, que parece ser um demônio malfazejo que se empenha em transformar, confundir e destruir tudo - se considerarmos tudo isso, então somos levados a bradar: para que tanto barulho? Para que tanto esforço, violência, angústia e miséria? Pois, em suma, a questão é simplesmente esta: que cada um encontre seu par. Por que semelhante bagatela representa um papel tão importante e leva sem cessar perturbação e discórdia à vida dos homens bem-regrados? Mas, para o investigador sério, o espírito da verdade revela pouco a pouco esta resposta: não se trata de uma insignificância, e, pelo contrário, a importância do assunto é proporcional à seriedade e intensidade dos impulsos. A finalidade última de todo o empreendimento amoroso - derive para o trágico ou para o cômico - é realmente o mais grave e importante entre todos os outros fins da vida humana, merecendo, pois, a profunda seriedade com a qual todos o buscam. Com efeito, essa questão significa nada menos que a composição da próxima geração. As dramatis personae [os atores] que entrarão em cena quando dela sairmos serão assim determinadas, na sua existência e na sua natureza, por essas tão frívolas disputas amorosas. Assim como o ser, a existentia dessas pessoas que virão é condicionada pelo impulso sexual em geral, igualmente a própria natureza do seu caráter, a sua essentia, é condicionada pela escolha individual para a satisfação do amor sexual, ficando assim irrevogavelmente determinada em todos os aspectos. Esta é a chave do problema: conhecê-la-emos melhor quando tivermos percorrido todos os graus do amor, desde a mais fugaz inclinação até a paixão mais veemente, quando então constataremos que a sua diversidade surge do grau da individualização da escolha. [...] Todas as paixões amorosas da geração presente são, portanto, para a humanidade inteira, uma grave meditação sobre a composição da geração futura, da qual, por sua vez, dependem inúmeras outras gerações. Com efeito, não se trata aqui, como nas demais paixões humanas, de uma desgraça ou de uma vantagem individuais, mas da existência e da constituição especial de todo gênero humano futuro; e desse modo, a vontade individual surge como um poder maior, transformando-se em vontade da espécie.
Como disse Diderot, "por trás dos nossos mais sublimes sentimentos e da nossa mais pura ternura há um pouco de testículo". Os românticos de meia-tigela podem esbravejar e protestar de que trata-se de uma visão niilista e fria sobre o amor, essa de Schopenhauer. No entanto, pra mim, é uma das mais belas, quentes e sublimes maneiras de encarar a nós mesmos e a nossos sonhos, desejos, amores e paixões. É de bambear as pernas.
Um comentário:
A-B-S-U-R-D-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O-O........
Schopenhauer coloca para fora tudo aquilo que pensamos mas que, por vezes, nos parece indizível
Ainda bem que vc comentou primeiramente a Morte e em conseguinte o Amor Sexual.
Se fosse ao contrário, muito possivelmente, poderia causar um certo pessimismo ao leitor em relação a própria vida.
Há morte, mas também há muita vida.
Para que viver pensando na morte enquanto estamos vivos e pulsando?
Schopenhauer, por mais niilista e pessimista que seja, consegue nos trazer uma paixão absurda pela vida. Basta lê-lo. E claro, viver!
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