28 de março de 2008
Entortô o carcanhá da cobra
Ok, imperador, pensemos.
Depois de 17 rodadas, a classificação do campeonato é essa:
1- Guaratinguetá - 34
2- Palmeiras - 34
3- São Paulo - 32
4- Ponte - 31
5- Corinthians - 30
6- Barueri - 29
7- Santos - 29
Classificam-se 4 times para a semis. Os dois primeiros já chegaram lá. Precisam de, no máximo, uma vitória nos dois jogos que restam. O Guará pega o Sertãozinho em casa e depois o Ituano fora. Muito fácil. O Palmeiras recebe o São Caetano no Palestra e sai pra jogar a última rodada em Barueri. Ituano e São Caetano não brigam mais por nada nesse campeonato. O Sertãozinho briga pra não cair, mas o time é muito ruim, e vai jogar fora de casa. O único que incomoda é o Barueri, que pode chegar na última rodada com chances de classificação pois pega agora a recém-eliminada Portuguesa, mas só complica o Palmeiras se o time de Valdívia cometer a proeza de não ganhar do Azulão em casa. Enfim, os dois primeiros estão classificados.
O São Paulo, pelo jeito, também já está com a mão na vaga. Sai na próxima partida pra pegar o Bragantino e recebe o Juventus na última rodada. O Braga é outro que não tem mais o que fazer nesse campeonato e só deve criar algumas dificuldades por jogar em casa. Mas o time é fraco e tende a perder o jogo. Caso um empate aconteça, o São Paulo precisaria vencer o Juventus no Morumbi. É teoricamente mole. Só complica um pouco se o Juventus não ganhar do Guarani na próxima rodada (é provável que ganhe, joga em casa, é melhor que o pobre Bugre). Se o Juventus não vencer, vai ter que jogar o sangue contra o São Paulo pra não cair. Mesmo assim, o time é muito inferior e o jogo é no Morumbi. Enfim, o São Paulo tambem está dentro.
Então resta apenas uma vaga para quatro candidatos. E aí é briga de foice. O time que parece mais provável de conseguir a classificação é o Corinthians (chega uma hora em que o analista deve constatar as verdades, mesmo que dolorosas e repugnantes). Mesmo em quinto e em baixa, saindo de um derrota pro Santos, o time tende a ganhar as próximas duas, pois pega o Marília em casa e o Noroeste em Bauru. Carnes-mortas, pois nenhum dos dois tem mais o que fazer nesse campeonato. Só que, vencendo ambos, o Corinthians chega a 36 pontos. Não depende apenas de suas forças, pois a Ponte também pode ganhar em ambas as rodadas e chegar a 37. Mas estamos, nós pontepretanos, num mato sem cachorro, por causa do último jogo: a Ponte vai à Vila Belmiro. Provavelmente, o Santos chega à última rodada com 32 pontos, pois tende a não bobear (como a Ponte bobeou) lá em Rio Claro, contra o lanterninha. A Ponte também tende a vencer (oxalá meu pai!) em casa o Noroeste, enfraquecido sem o Otacílio Neto, recém-operado, chegando na Vila com 34 pontos. Para se manter à frente do Santos, bastará então um empate lá, o que já é complicadíssimo. Mas e o Corinthians? E se o Corinthians estiver vencendo o Noroeste? Se a Ponte não quiser depender de ninguém, então, provalvelmente, vai ter que jogar pra ganhar do Santos na Vila, com Pelé na tribuna, Leão na borda do campo atazanando a arbitragem, a torcida no cangote e por aí vai. Xiiii...
Após esta longa exposição, a conclusão objetiva é, caros companheiros pontepretanos de paz e de guerra, óbvia: agora fodeu mais da metade, entortô o carcanhá da cobra.
24 de março de 2008
Duas dicas pra sair do marasmo cinematográfico
Persépolis (link para eMule; a legenda* para este arquivo específico está aqui) é uma animação que conta a história de Marjane Satrapi, uma jovem rebelde iraniana que cresce sob o então recém-instalado regime dos aiatolás e muda-se para a Europa. O filme é co-dirigido pela própria Satrapi.
A pequena Marjane sendo importunada pelas conservadoras de burca
Da crítica de A.O. Scott, do NYT, via G1:
Mesmo com seu visual despretensioso, “Persépolis” é caloroso e surpreendente, com humor vivo e espírito independente. Seu retrato estilizado do mundo – especialmente das ruas e prédios de Teerã e Viena – transforma geografia em poesia. [...] O clima do filme é freqüentemente sombrio, mas também chama a atenção por seu encantamento e ousadia. É a expressão perfeita da resistência artística aos poderosos e opressores, que insistem que o mundo só pode ser visto em preto e branco.
Tartarugas Podem Voar (link para eMule; legenda* específica aqui) é uma co-produção Irã-Iraque que retrata a vida de crianças de um acampamento para refugiados curdos no Iraque em meio à iminente invasão norte-americana, onde imperam a desinformação e o desamparo. Segundo o diretor, o iraniano Bahman Ghobadi, "nos canais por satélite, Bush e Saddam viraram as estrelas. Eu mostro o oposto disso. As estrelas no meu filme são o povo, as crianças; Saddam e Bush são apenas pano de fundo". O filme passa longe da pieguice que se poderia esperar de um tema como esse e consegue arrancar muitos risos, mesmo que boa parte das crianças esteja mutilada por minas terrestres. O final, no entanto, é apropriado - ou seja, é de uma tristeza inconsolável. Não há redenção na guerra.
Mr. Satellite (em pé) e sua turma de órfãos brincam de Rambo
*Para assistir aos filmes com legenda há vários métodos. Vai aqui dois deles:
1) baixe e instale o player Radlight; abra com ele o filme; no canto superior-esquerdo do player clique em "File">"Load Subtitles" e carregue a legenda;2) baixe e instale um pacote de codecs como o K-Lite Mega; coloque o filme e a legenda num mesmo diretório; renomeie o arquivo da legenda para o mesmo nome do arquivo do filme (mantendo a extensão .srt); execute o filme no próprio Windows Media Player.
Vencer, vender, matar ou morrer
“Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você.” Os versos da trilha sonora de um dos filmes brasileiros mais vistos e comentados dos últimos tempos ecoam no pequeno auditório da sede da seguradora Unibanco AIG, em um casarão da avenida Brasil, em São Paulo. São 20h de uma quinta-feira, 28 de fevereiro, quando o “caveira 69″, Paulo Storani, 45, ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais), é anunciado à platéia. Um slide com a frase “Construindo uma Tropa de Elite” esclarece o motivo do improvável encontro de mundos: um ex-policial do grupo de operações especiais da Polícia Militar do Rio e vendedores de seguro. Sob aplausos, o palestrante entra na sala repleta e grita: "Caveira!”. Storani, que está se convertendo em estrela do segmento motivacional, recebe de volta, em uníssono, a saudação, típica dos oficiais do batalhão.
O restante do texto está aqui, que ainda traz algumas frases do pessoal da pílula azul, como "quando alguém consegue bater a meta, faz no computador um bonequinho com a caveira do Bope e manda por e-mail", ou "na empresa, a gente agora só se chama por número".
Essa gente tinha que pedir pra sair (da matrix).
22 de março de 2008
Black Bridge Sports Arena
Sim, meus amigos, minhas amigas. Sim, irmãos pontepretanos que não perdem um dérbi há cinco anos, vocês que estavam lá comigo e gritaram gol por quatro vezes. Sim, vocês que exercem esse amor futebolístico incondicional, mártires das arquibancadas de concreto quente que arriscam a última safena em cada saída de gol do Aranha e esgarçam as cordas vocais clamando por Vanderlei. Sim, vocês que sairam ensopados do campo em cada jogo desse campeonato, que haveremos de vencer heroicamente, duela a quiem duela, diria Dario Gigena. Sim, vocês que entoam do mais profundo ventrículo esquerdo dos seus corações apaixonados aquele "Ponte Preta sempre, sempre, na derrota e na vitória". Sim, admirem o estupendo, fantabuloso (©Sasqua) e majestoso projeto para o novo estádio da mais querida Associação Atlética do mundo!
18 de março de 2008
O filho das estrelas
Clarke e Kubrick, os dois criadores da obra-prima do cinema de ficção espacial, são agora fantasmas. Espero que eles nos assombrem por muito, muito tempo, com suas visões poéticas do espaço. Leia, a seguir, a íntegra do prólogo de 2001, escrito a quatro mãos.
Erguem-se trinta fantasmas atrás de cada homem vivo. É esta precisamente a
proporção entre os que ainda vivem e os que já morreram. Cerca de cem bilhões de criaturas humanas já pisaram o planeta Terra desde que o mundo existe.
É um cifra interessante, pois, por coincidência, há aproximadamente cem bilhões de estrelas nesse universo particular, a Via-Láctea. Portanto, para cada homem que viveu corresponde uma estrela em pleno brilho.
Mas cada uma dessas estrelas é um sol, freqüentemente muito mais brilhante e resplandecente do que a pequenina e vizinha estrela a que chamamos o Sol. É em torno de muitos deles, da maioria, talvez, desses sóis desconhecidos, que giram os planetas. É quase certo assim haver no céu terra suficiente para proporcionar a cada membro da espécie humana, incluindo o homem-macaco, o seu paraíso - ou inferno - particular, do tamanho do mundo.
É impossível saber quantos desses paraísos ou infernos em potencial são habitados e por que espécie de criaturas o são. O mais próximo deles está situado um milhão de vezes mais longe que Marte ou Vênus, essas metas ainda remotas para a próxima geração. Mas as barreiras dessa distância desmoronam. Chegará o dia em que haveremos de encontrar entre as estrelas os nossos semelhantes - ou os nossos mestres.
Os homens custaram a enfrentar essa perspectiva. Alguns ainda continuam esperando que ela nunca se torne realidade. Entretanto, cada vez é mais freqüente a pergunta: Não será possível que já tenham acontecido tais encontros, visto nós mesmos estarmos prestes a aventurar-nos ao espaço?
Por que não? Este livro bem pode ser uma resposta para pergunta tão razoável. Mas, por favor, lembrem-se de que é ele apenas ficção.
A verdade, como sempre, será muitíssimo mais estranha.
Como revelou a Folha Online, "em seu aniversário de 90 anos, em 16 de dezembro de 2007, o autor desejou entrar com contato com extraterrestres antes de sua morte". Nós, vivos de agora, ainda temos uma exígua chance. Provavelmente, acabaremos frustrados como Clarke. Talvez, os netos dos netos dos netos encontrem uma resposta definitiva para tal "pergunta tão razoável". Pouquíssimos, porém, foram e serão capazes de imaginar como Clarke o que há nesse enigma chamado espaço. Voou alto, como o "Filho das Estrelas", na parte final de 2001:
"Novamente confiante, como um mergulhador que recupera a calma, lançou-se
através dos anos-luz. A Galáxia escapou da moldura em que ele a enquadrara.
Estrelas e nebulosas ultrapassavam-no numa ilusão de velocidade infinita. Sóis
explodiam e desapareciam enquanto ele deslizava como sombra através de seus
núcleos. A escura poeira cósmica, que certa vez chegara a temer, parecia não
mais que o adejar das asas de um corvo sobre a face do Sol."
Clique aqui para ler um sucinto perfil de Clarke, por Salvador Nogueira, do G1.
Nassif versus Veja
Luis Nassif está arrebentando a Revista Veja, o Diogo Mainardi, o Reinaldo Azevedo, e a patotinha toda que pratica, há muito, o tipo mais repugnante de jornalismo. Tudo muito bem esmiuçado. Você que já tinha náuseas ao ler a Veja por questões mais gerais como o característico reacionarismo intolerante, vai ficar estarrecido. E você que ainda mantinha alguma fé no semanário, vai começar a repensar a assinatura.
17 de março de 2008
16 de março de 2008
Aconteceu, virou manchete
Em maio de 2007, o Washington Post publicou uma matéria sobre o primeiro campeonato mundial de caminhada no arame bambo, realizado como travessia individual sobre o rio Han, em Seul.
A manchete:
Skywalker in Korea Cross Han Solo
Achei a pérola no excelente blog do Pedro Dória. Por lá encontram-se algumas das melhores análises de política internacional de toda a blogosfera.
Aliás, alguém aí lembra de manchetes geniais como essa? A imprensa esportiva às vezes solta umas ótimas, como aquela da Gazeta Esportiva por ocasião da vitória do Santos sobre o Roma num amistoso lá na própria cidade eterna: "SANTOS PAPA ROMA" (um amigo me contou essa há muito, muito tempo numa galáxia distante e nunca me esqueci, tamanha a genialidade). Nos Estados Unidos há até um concurso de manchetes criativas. A vencedora do ano passado versava sobre o debate astronômico em torno do status de Plutão: "Will Pluto stay a planet? It looks remote...", algo como "Plutão permanecerá como planeta? Parece remoto...".
Como diria o grande humorista e dublê de professor Fernando Teixeira: essa... de Queiroz!
10 de março de 2008
Ainda sobre a Tropa
Por Sérgio Albergaria
Qualquer análise sobre uma questão polêmica tende a ser também polêmica.
Toda produção cultural está visceralmente ligada às condições materiais de vida daqueles que a elaboraram e atrelada às condições sociais da realidade específica em que essa cultura surgiu.
É certo que o fascismo se caracteriza pela “dialética dos punhos e dos revólveres”, como dizia um fascista espanhol.
Mussolini se orgulhava da truculência do movimento fascista e incentivava seus ímpetos violentos.
No início, o fascismo era categórico: “a violência é imoral quando é fria e calculada, mas não quando é instintiva e impulsiva”. Com crescimento do movimento fascista o Duce procurou organizar e sistematizar a violência de modo mais conseqüente. Deixou de ser “instintiva” para ser calculada: “A violência fascista deve ser pensante, racional, cirúrgica”. É o que diz a “Ópera Omnia” de Mussolini, citada por Leandro Konder em sua “Introdução ao Fascismo”, obra de apenas 122 páginas, mas fundamental para quem queira entender o que é o fascismo.
Baseado nessas premissas é um exagero rotular o filme “Tropa de Elite” como fascista, com fez o camarada Luís Fernando, moço bem intencionado e de boa formação que tem como característica pessoal o exagero da mordacidade e a exacerbação da ironia corrosiva.
Para um professor de escol, como o é o camarada Luís Fernando, é preciso ter cuidado com as afirmações categóricas e cautela com certas rotulações sectárias, sob pena de deixá-las comprometer a análise e vincular a reflexão sob apenas um aspecto: o ideológico.
Não creio que o filme de José Padilha seja fascista nem que ele, como autor da obra, tenha tido propósitos unicamente capitalistas, ou seja, de obter lucro financeiro fácil, apenas, como resultado.
Tropa de Elite não é fascista. É um ponto de vista sobre o fascismo. Não é uma apologia, mas uma provocação. Não faz proselitismo da violência, mas a retrata, a fotografa, a radiografa vista de uma perspectiva particular e peculiar: a de um policial formado no arcabouço de um Estado fascista que exacerba o paradoxo de que a violência da corrupção policial se combate com a violência da crueldade.
Talvez, de fato, tenha cometido um deslize ao não proporcionar um contraponto à perspectiva narrativa do Capitão Nascimento, ou de nessa narrativa não colocar um outro ego do protagonista como elemento fomentador de reflexão. Não chega, porém, a ser um pecado, como de certa forma entendeu o camarada Danilo, mesmo porque, segundo minha – talvez míope – visão, o objetivo da narrativa é um só: a catarse social vista e narrada do lado que detém o poder e o controle.
Não me surpreende o fato de que, em determinadas sessões, a platéia tenha aplaudido a tortura e ovacionado a truculência da tropa. É plausível que a burguesia e a pequena-burguesia, alienadas e esteriotipadas, tenham se submetido à provocação e, sem perceber, revelado em público instintos e posturas que só têm coragem de mostrar em surdina. Vide Eldorado de Carajás, Matupá, o índio pataxó queimado, a chacina da Candelária e outros tantos massacres que, de certa forma, foram “festejados” em surdina pela classe dominante.
Essa “revelação” da face obscura e covarde da pequena-burguesia tem fundamento no próprio fascismo, pois, como definiu Gramsci, “o fato característico do fascismo consiste em ter constituído uma organização de massa da pequena burguesia”.
Esse é o mérito do filme. Por ser polêmico, funciona ora como hospedeiro ora como vetor das doenças ideológicas. Além disso, por ser provocador, atiça os fascistas a se revelarem ao instigá-los a sair de suas tocas e expressarem publicamente o que têm de pior (ou de melhor para eles): a crueldade, a perversidade, a truculência, a arrogância, a prepotência, o cinismo, a hipocrisia.
É próprio do Estado fascista aprofundar contradições na burguesia e na pequena burguesia; confundir a herança histórica como método de impedir que haja uma missão histórica em comum entre a pequena burguesia e o proletariado; restringir o “pleno acesso ao reconhecimento da verdade da história”.
O que “Tropa de Elite” fez, foi expor as entranhas de uma realidade como acervo que misturado às conquistas de uma sociedade em evolução, mostra aqui e ali preconceitos sutis e óbvios, discriminações, intolerância, antipatias (ou anti-empatias), cristalizadas na dominação de classe.
O cinema é um poderoso instrumento provocador para instigar o público a submeter suas próprias contradições a uma reflexão libertadora. Mas essa entrega tem um preço: cobra uma humildade de renúncia às ideologias e fantasias políticas, e obriga a ver o trabalho artístico como um momento, um aspecto, uma vertente do movimento de transformação da sociedade.
José Padilha, como produtor cultural, tem um mérito inegável: fez uma exposição competente de um aspecto essencial de uma das formas do fascismo, isto é, mostrar que para existir e sobreviver o regime fascista depende de um aparelho repressivo tão amplo que implica a militarização da atividade policial e que esse apoio militar necessita estar alicerçado na força bruta, na truculência, na crueldade da tortura, na barbárie como tradição para manutenção da “ordem social” e na formação de pessoas dóceis sem espírito crítico, recalcadas, fáceis de manipular e de cooptar para identificação com a personalidade rude e autoritária do “chefe”, do comandante, do Estado tutor.
Também parece evidente que o filme mostra o segmento estudantil universitário como um bando de babacas metidos a vanguarda social. Pergunto-me: e não é assim, todavia, que em muitos aspectos os estudantes universitários se mostram?
Não se deve generalizar, é certo. Mas, boa parte da comunidade estudantil universitária hoje aparenta ser – e não sei se efetivamente o é – um bando de “perdidos” à procura de respostas para questões que não dependem do curso que freqüentam, ou por serem esses cursos inadequados como busca, ou, ainda, porque a educação, em um sistema capitalista, é incapaz de responder a certas indagações sociais porque estruturada para preservação da ignorância como método para manter os possíveis agentes transformadores no cárcere da apatia da luta pela sobrevivência pessoal, sob pena de exclusão do mercado de trabalho existente.
É natural, mas não irrelevante, as reações das platéias em regozijo à atuação do protagonista do filme e em gáudio pela subjugação dos marginais e da população que com eles convive. Pergunto-me, todavia, se pelo preço da sessão de cinema, algum deles, ou parte da platéia, era integrada por aquelas pessoas que, por exemplo, encontro nos ônibus lotados de manhã e à noite?
A “choldra” que pega “buzão” comprou cópia pirata do filme e não estou certo de que muitos não tenham tido a mesma reação, ou reação parecida, em casa. Isto é possível porque no estado de espírito em que a “escumalha” sobrevive, o espírito do Estado é, para muitos, justificável. Afinal, entre as duas primeiras preocupações atuais da “ralé” que pega ônibus, estão o desemprego e a segurança-violência. E olha que de “buzão” eu entendo!
Não creio que o filme tenha ignorado a questão social envolvida no tráfico nem que tenha ignorado a proibição das drogas como instrumento de controle social e adestramento da mão-de-obra, como viu o camarada primeiro comissário do comitê central.
O que o filme mostra é exatamente isso: a ignorância estatal da questão social na qual está envolvido o tráfico que amiúde atua como substituto do Estado; a proibição das drogas e o combate violento e desigual como arma de controle e de treinamento da mão-de-obra. Mostra é a síntese do Estado fascista, mas isso não o torna um libelo ao fascismo nem o transforma em um instrumento fascista.
Às vezes, para combater a hipocrisia e enfrentar a mentira, basta apenas contar a verdade de um ponto de vista verdadeiro, ainda que condenável e absurdo.
Infelizmente, até por questões geográficas, não podemos deportar a escória da nossa classe média para Miami.
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O "primeiro comissário do comitê central", vulgo HAL9000, vulgo The One, vulgo "Arcebispus Maximus Imortalis", está convidado a escrever uma réplica na página principal do blog.
O direito de resposta ao Luis Fernando, desde já gentilmente cedido, faz parte dos esforços deste blog no combate ao nepotismo e à homofobia.
Danilo
6 de março de 2008
Osso duro de roer
Assisti por esses dias, com imenso atraso, Tropa de Elite. Recém premiado com o Urso de Ouro de Berlim, o filme não tem metade do refinamento técnico ou mérito cinematográfico de um Cidade de Deus. Mesmo assim, o filme de José Padilha é muito bom e justifica o alvoroçado debate que criou ao seu redor. Ontem, numa discussão com alguns amigos estoriadores, o ponto da discórdia foi mais ou menos o mesmo que mobilizou a crítica, tanto no Brasil quanto na Europa e nos Estados Unidos: Tropa de Elite é um filme fascista? Eu e Vanessa achamos que não, não se trata de uma obra fascista. Rodolpho e Luis Fernando responderam afirmativamente, com diferentes matizes. Além disso, visto que meus dois amigos não estão sozinhos na parada, acompanhados que estão por boa parte das críticas ao filme (clique aqui para ler um resumo da repercussão no exterior e aqui para a crítica negativa da Variety) onde então está o problema com Tropa de Elite?
Rodolpho ficou particularmente horrorizado com a reação do público no cinema, que praticamente aplaudia a cada cena de tortura à "escumalha" e a cada "bandido" morto pelo Bope. Como eu vi o filme em casa, fui poupado de presenciar tal absurdo. Não tenho como avaliar o efeito que isso teria em mim, e tenho que reconhecer que talvez ficasse com raiva do filme. Mas, como o próprio Rodolpho sabe, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: há o filme, e há a reação do público. São coisas que se entrelaçam, mas que devem ser distinguidas. A reação do público pode revelar algo sobre o filme, mas mais ainda sobre o próprio público. "Se Tropa de Elite, por acaso, revelar que uma parcela grande da população brasileira imagina que a violência é a solução para a violência", diz José Padilha, em recente entrevista, "ele terá prestado um grande serviço para nossa sociedade, revelando esse fato dramático e trágico". Embora a questão não seja assim tão simples, o diretor tem razão. Se o público se identifica com o capitão Nascimento e com a truculência selvagem do Bope, o problema está mais com o público do que com o filme. No entanto, Tropa de Elite tem sua pequena parcela de responsabilidade nisso, da qual Padilha se exime. Um dos problemas está em apresentar o Bope como o último bastião da incorruptibilidade policial. Outro, mais sutil, advêm da opção (legítima) de apresentar a história do ponto de vista de um desses policiais. A narrativa é controlada, com uma quase onipresente voz em off, pela perspectiva do capitão do Bope. Fruto dessa opção, falta aos traficantes e aos jovens consumidores de drogas traços mais fortes de humanização (ou algum tipo de justificação) do que os poucos que o filme apresenta. Uma ou outra cena mais esclarecedora, uns dois minutos a mais que dessem ao público uma boa contrapartida ao pensamento quase monocromático do narrador seriam suficientes para manter sob controle as reações mais exacerbadamente "fascistas" do público. Trata-se de um descuido por parte de Padilha, e não de uma evidência do subtexto político do filme. Se já é difícil, pra não dizer impossível, um autor ter controle sobre a recepção de sua obra e a utilização que dela será feita, o que dizer então de um filme polêmico como Tropa de Elite? Porém, deve-se ressaltar: se tudo tivesse que ficar claro numa obra de arte, se o ponto de vista político do autor tivesse de ser explicitado em cada trecho, em cada fala, em cada cena, então não teríamos arte, mas algo mais assemelhado a um panfleto, uma mera tentativa de convencimento. Ou teríamos, no máximo, uma arte menor, que não dá espaço para os espectadores aflorarem o que têm debaixo da pele. O incômodo de alguns está no fato de que Tropa de Elite aborda questões intrinsecamente polêmicas dando espaço demais, resvalando na ambiguidade.
A maior fonte de confusões é, como se vê, a perspectiva da narrativa. O eixo principal é o capitão Nascimento. Como narrador, é ele quem guia o público e, muito compreensivelmente, pode ter sido visto como um herói (ou, dependendo do posicionamento no espectro político, vilão). O filme, porém, não o apresenta assim. Seu background familiar (a esposa grávida) e seus problemas psicológicos servem para aprofundar o personagem, torná-lo palpável, verossímil. Como é ele quem narra, não há questionamento do que ele diz sobre "bandidos" e "playboys". Mas, oras, isso não deve ser confundido com o direcionamento político mais amplo do filme, como pensa Luis Fernando. Em Cidade de Deus, pela forma como a narrativa está estruturada, torcemos para Mané Galinha e Cenoura contra Zé Pequeno. Torna-se fácil (mas incorreto) escorregar para a opinião de que Cidade de Deus leva a uma visão que torna uma parcela dos membros do tráfico de drogas moralmente defensável. O mesmo escorregão incorreto, oposto, pode acontecer com Tropa de Elite.
Por fim, a fonte de confusões sobre a narrativa reside também nos dois honestos aspirantes ao Bope: Matias, mais interessado em brincar de guerra, e André, mais sofisticado, estudante de direito. O primeiro falha por sua falta de inteligência e auto-controle; o segundo tem a sua transformação em policial violento coroada pela crueldade final do filme. Uma interpretação descuidada pode levar a ver a história de André como o exemplo cabal do direcionamento político do filme: André, o honesto, o virtuoso, segue o caminho do legítimo guerreiro do bem. Acompanho Marcelo Coelho, da Folha, na opinião de que, pelo contrário, trata-se de "uma história extremamente infeliz": André, o sofisticado, o ponderado, segue o caminho da violência brutal dos massacres, traduzindo-se num dos melhores e mais antifascistas elementos do filme.
5 de março de 2008
O código do sertão
Oscar na mão não garante mérito cinematográfico, que o diga a constrangedora premiação de um engodo como Crash, de Paul Haggis, em 2006. Mas o prêmio de "melhor filme" deste ano parece ter ido parar em boas mãos - as de Ethan e Joel Coen, por Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007). O filme é excelente e, como Sweeney Todd, faz carnificina com muito bom humor.
Visto que uma rápida pesquisa no Google rende resultados que destrincham o filme de várias formas - de aspectos da roteirização da obra original à direção dos irmãos Coen e à atuação de Javier Bardem - torna-se desnecessário repetir o expediente aqui, dado que o risco de chover no molhado é grande. Mas uma questão parece não ter sido suficientemente abordada pela crítica, mais preocupada com questões estilísticas do que propriamente culturais. Trata-se do "código do sertão".
Em parte de Homens Livres na Ordem Escravocrata - uma obra da década de 60, ainda bastante influente no meio acadêmico que se ocupa de questões acerca das sociedades do interior do Brasil - a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco analisa o papel da violência na orientação da conduta dentro de comunidades do chamado sertão, afastadas dos núcleos urbanos. O capítulo que trata do chamado "código do sertão" relata casos de sanguinolência ímpar para ilustrar a tese de que a violência passou a ser tacitamente admitida no sertão do século XIX como norma imperativa de conduta na resolução de conflitos pessoais devido a um estado primitivo de desenvolvimento social e cultural. A idéia subjacente é a de que o sertanejo não tem alternativa a não ser sobreviver com seus parcos meios de subsistência numa terra que lhe é dura e inóspita, convive com a natureza e luta contra ela em batalhas incessantes que lhe embrutecem o espírito. Resultaria disso uma cultura tosca, primitiva, que não permite a esse indivíduo objetivar-se no mundo, reconhecer os ecos de sua própria expressão nesse mundo por meio de uma obra ou trabalho abstrato, restando-lhe apenas sua existência física. Daí a violência física, a enxadada na cabeça e a faca no bucho como formas de resolução dos conflitos com os outros. Esse tipo de análise parte de pressupostos um tanto questionáveis e reducionistas (como a rígida, estática, oposição entre civilidade e barbárie e sua respectiva identificação com o meio urbano e o sertão) e, no entanto, ainda parece ser a maneira vigente de tratar o problema.
Em que pese as diferenças e peculiaridades de Brasil e Estados Unidos, o contexto social e histórico diverso e as próprias sutilezas do filme, o que vemos em Onde os Fracos Não Têm Vez não é muito diferente disso. O Texas é a epítome do que hoje se convencionou chamar de "América profunda", o habitat de rednecks pouco instruídos que simbolizam o que há de mais atrasado no império. E é num Texas também profundo, numa região até mesmo longe de Dallas ou Houston, que se desenvolve o jogo de perseguição entre os três protagonistas. A cena final (um fim súbito, que tem tudo para ser incompreendido), com reminiscências do velho e cansado xerife sobre seu pai enfrentando o frio do deserto na busca pela sobrevivência numa situação brutalizante, é a melhor expressão do subtexto presente no filme. Confira.
Não que o Texas não represente o que há de pior nos EUA, diga-se.
4 de março de 2008
Arco-íris vivo
Sem comentários.
E... este espaço não mudou nada mesmo.
3 de março de 2008
Sobre tortas e degolas
O Barbeiro Demônio, sua cúmplice, as tortas e, ao fundo, o trânsito de carnes.
Foi difícil sair da sala e não avaliar a vingança melodiosa de Sweeney Todd, o Barbeiro Demônio, como o melhor filme que Tim Burton já fez. Inevitável, portanto, repetir aqui o que grande parte da crítica já disse: música sensacional, direção e produção impecáveis e atores tinindo. Boa parte do mérito do filme está nas atuações. Johnny Depp só não levou o Oscar porque Daniel Day-Lewis estava no páreo, e a escolha da mulher do diretor, Helena Bonham Carter, para companheira de degolas do barbeiro passa longe de qualquer suspeita de nepotismo. A maioria dos coadjuvantes fica à altura do casal protagonista. Um inesperado Sacha Baron Cohen, quer dizer, Borat, surge como um barbeiro italiano charlatão. O grande vilão, um juiz que acaba com a primeira vida de Todd, fica a cargo de Hans, aquele alemão que explodiu o Nakatomi Plaza (o nome do ator é Alan Rickman, mas eu só fui saber disso agora pois existe o IMDb, e não é isso que vai me fazer ver esse cara como outra coisa a não ser Hans, o ladrão malvado e querido que só parou por causa de John McClane). Até mesmo um ator infantil (que não é Halley Joel-Osment) saiu-se com uma atuação convincente. A maionese só desanda, ou melhor, o sangue só coagula quando entra em cena um coadjuvante e insosso casalzinho jovem, que destoa do resto a ponto de causar náuseas e constitui o único ponto fraco do filme.
A fotografia é dessas que cativam os apreciadores de um climão dark a la Drácula de Coppola. E o senso de humor que Sweeney Todd transpira é dos melhores, negro, retinto, um improvável festival de gargantas cortadas e enxurradas de sangue que provocam riso, sem contudo soar a venda deliberada de comédia para o público. A melhor e mais memorável cena acontece quando o barbeiro e sua cúmplice resolvem juntar a fome com a falta de escrúpulos e entrevêem um futuro brilhante ao observar um espetáculo de possíveis carnes para recheio de tortas transitando inadvertidamente pelas ruas de Londres. A receita não tem segredo mas dá muito certo: reduza os homens a mero gado, determine a qualidade da carne pela posição social dos manés e, voilá, surgirá uma levíssima e impagável crítica social. Obviamente, o destino cobra com juros os pecados do barbeiro e de sua companheira no final, mas nada que apague a ultrajante e deliciosa comicidade proporcionada por suas imoralidades.
1 de março de 2008
De volta, vivo e chutando
O Pálido Ponto Branco que você acabou de acessar mudou bastante, e provavelmente vai mudar ainda mais. Mas ainda trará pitacos sobre quase tudo, de música a corridas e elocubrações inquietas (e, espero, também inquietantes). Ainda transparecerá a mesma angústia, o mesmíssimo desconforto com o mundo. Enfim, este ainda é o mesmo Pálido de sempre, vomitando na internet a realidade semi-digerida por este organismo que escreve, a quem possa interessar.
Sejam todos bem-vindos novamente.