6 de março de 2008

Osso duro de roer

Luis Fernando e Rodolpho, os senhores são uns fanfarrões!


Assisti por esses dias, com imenso atraso, Tropa de Elite. Recém premiado com o Urso de Ouro de Berlim, o filme não tem metade do refinamento técnico ou mérito cinematográfico de um Cidade de Deus. Mesmo assim, o filme de José Padilha é muito bom e justifica o alvoroçado debate que criou ao seu redor. Ontem, numa discussão com alguns amigos estoriadores, o ponto da discórdia foi mais ou menos o mesmo que mobilizou a crítica, tanto no Brasil quanto na Europa e nos Estados Unidos: Tropa de Elite é um filme fascista? Eu e Vanessa achamos que não, não se trata de uma obra fascista. Rodolpho e Luis Fernando responderam afirmativamente, com diferentes matizes. Além disso, visto que meus dois amigos não estão sozinhos na parada, acompanhados que estão por boa parte das críticas ao filme (clique aqui para ler um resumo da repercussão no exterior e aqui para a crítica negativa da Variety) onde então está o problema com Tropa de Elite?

Rodolpho ficou particularmente horrorizado com a reação do público no cinema, que praticamente aplaudia a cada cena de tortura à "escumalha" e a cada "bandido" morto pelo Bope. Como eu vi o filme em casa, fui poupado de presenciar tal absurdo. Não tenho como avaliar o efeito que isso teria em mim, e tenho que reconhecer que talvez ficasse com raiva do filme. Mas, como o próprio Rodolpho sabe, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: há o filme, e há a reação do público. São coisas que se entrelaçam, mas que devem ser distinguidas. A reação do público pode revelar algo sobre o filme, mas mais ainda sobre o próprio público. "Se Tropa de Elite, por acaso, revelar que uma parcela grande da população brasileira imagina que a violência é a solução para a violência", diz José Padilha, em recente entrevista, "ele terá prestado um grande serviço para nossa sociedade, revelando esse fato dramático e trágico". Embora a questão não seja assim tão simples, o diretor tem razão. Se o público se identifica com o capitão Nascimento e com a truculência selvagem do Bope, o problema está mais com o público do que com o filme. No entanto, Tropa de Elite tem sua pequena parcela de responsabilidade nisso, da qual Padilha se exime. Um dos problemas está em apresentar o Bope como o último bastião da incorruptibilidade policial. Outro, mais sutil, advêm da opção (legítima) de apresentar a história do ponto de vista de um desses policiais. A narrativa é controlada, com uma quase onipresente voz em off, pela perspectiva do capitão do Bope. Fruto dessa opção, falta aos traficantes e aos jovens consumidores de drogas traços mais fortes de humanização (ou algum tipo de justificação) do que os poucos que o filme apresenta. Uma ou outra cena mais esclarecedora, uns dois minutos a mais que dessem ao público uma boa contrapartida ao pensamento quase monocromático do narrador seriam suficientes para manter sob controle as reações mais exacerbadamente "fascistas" do público. Trata-se de um descuido por parte de Padilha, e não de uma evidência do subtexto político do filme. Se já é difícil, pra não dizer impossível, um autor ter controle sobre a recepção de sua obra e a utilização que dela será feita, o que dizer então de um filme polêmico como Tropa de Elite? Porém, deve-se ressaltar: se tudo tivesse que ficar claro numa obra de arte, se o ponto de vista político do autor tivesse de ser explicitado em cada trecho, em cada fala, em cada cena, então não teríamos arte, mas algo mais assemelhado a um panfleto, uma mera tentativa de convencimento. Ou teríamos, no máximo, uma arte menor, que não dá espaço para os espectadores aflorarem o que têm debaixo da pele. O incômodo de alguns está no fato de que Tropa de Elite aborda questões intrinsecamente polêmicas dando espaço demais, resvalando na ambiguidade.

A maior fonte de confusões é, como se vê, a perspectiva da narrativa. O eixo principal é o capitão Nascimento. Como narrador, é ele quem guia o público e, muito compreensivelmente, pode ter sido visto como um herói (ou, dependendo do posicionamento no espectro político, vilão). O filme, porém, não o apresenta assim. Seu background familiar (a esposa grávida) e seus problemas psicológicos servem para aprofundar o personagem, torná-lo palpável, verossímil. Como é ele quem narra, não há questionamento do que ele diz sobre "bandidos" e "playboys". Mas, oras, isso não deve ser confundido com o direcionamento político mais amplo do filme, como pensa Luis Fernando. Em Cidade de Deus, pela forma como a narrativa está estruturada, torcemos para Mané Galinha e Cenoura contra Zé Pequeno. Torna-se fácil (mas incorreto) escorregar para a opinião de que Cidade de Deus leva a uma visão que torna uma parcela dos membros do tráfico de drogas moralmente defensável. O mesmo escorregão incorreto, oposto, pode acontecer com Tropa de Elite.

Por fim, a fonte de confusões sobre a narrativa reside também nos dois honestos aspirantes ao Bope: Matias, mais interessado em brincar de guerra, e André, mais sofisticado, estudante de direito. O primeiro falha por sua falta de inteligência e auto-controle; o segundo tem a sua transformação em policial violento coroada pela crueldade final do filme. Uma interpretação descuidada pode levar a ver a história de André como o exemplo cabal do direcionamento político do filme: André, o honesto, o virtuoso, segue o caminho do legítimo guerreiro do bem. Acompanho Marcelo Coelho, da Folha, na opinião de que, pelo contrário, trata-se de "uma história extremamente infeliz": André, o sofisticado, o ponderado, segue o caminho da violência brutal dos massacres, traduzindo-se num dos melhores e mais antifascistas elementos do filme.

4 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Sua análise é superficial. Veja como Capitão Nascimento é apresentado: como um cara sofredor, que prejudica sua vida pessoal, sua família, em prol da sociedade. Em suma, ele e os demais membros do BOPE, fazem sacrifícios pessoais... como os velhos heróis dos filmes policiais, os incompreendidos, que garantem a vida em sociedade, pastiche de filme policial barato, desses de Sessão da Tarde, da Globo. A velha ética cristã do sacrifício em nome de algo maior.
E mais, é altamente previsível que um filme que ignora a questão social envolvida no tráfico, a questão da proibição das drogas como ferramenta de controle social e adestramento da mão-de-obra, e mostra traficantes apenas como bandidos, seja aplaudido em cinemas por essa massa de idiotas mal informados e acríticos... ele sabia... não costumo subestimar gente com formação como a desse diretor... ele quis é ganhar dinheiro.... justo, afinal não vivemos na ilha de Morus... mas não devia ter vindo como essa estória de que não previa...

Vanessa disse...

Luís, me desculpe, mas a análise simplista aqui é sua.

Consigo visualizar dois tipos de espectadores para a Tropa: os que julgam o filme reacionário, fascista(que é seu caso) e os "acríticos", aqueles que aplaudem o "herói".

Mas não é bem por aí. Estamos falando de cinema, de arte, não de panfleto (como o próprio Padilha já salientou).

Padilha mexeu num verdadeiro vespeiro, talvez sem mesmo ter tido a real intenção. Também não acredito que tenha feito o filme com único propósito de "ganhar dinheiro". Até mesmo pode ser que não esperasse gerar tamanha polêmica, mas houve, e claro que ele lucrou com isso.

Sei dos pontos fracos. Reconheço. Mas isso não faz de Tropa um filme fascista.
A fragilidade do filme se dá quando você o vê servindo de "lição de casa" para a grande maioria.

Mas também acredito que não somente a massa é desinformada e "acrítica". Acho que existe uma boa parcela de "acríticos" também em cinema.

Sasqua disse...

Minha análise é muito próxima à sua, Sherpa.

E se, por um lado, como aponta o The One, Arcebispus Maximus Imortalis, o diretor mostra os traficantes simplesmente pelo viés da bandidagem e sem considerar todo o aspecto social que envolve a questão, por outro ele faz muito bem em apontar a arrogância tipica de amplos segmentos das classes médias altas que usam de forma vazia os problemas sociais como muletas no sentido de legitimar ações incoerentes e nocivas. Reconhecer os problemas e atuar de forma a amenizá-los, é uma coisa. Usá-los ocasionalmente para se alto justificar é um exemplo, no mínimo, de desonestidade intelectual. Vendo essas discussões, me lembro, na época da faculdade,das reclamações acerca da postura do saudoso professor Donato. Ele era o satanás em pessoa. Prejudicava aqueles que não gostava a toa. Era sádico.
Mas, salvo alguns casos localizados e de conhecimento público, grande parte daqueles que reclamavam dele possuíam de fato sérias dificuldades. A maior parte dos que batiam no cara faziam isso apenas para se auto-justificar. Escreviam mal, tinham dificuldades nas provas e trabalhos e muitas vezes na própria compreensão das leituras da disciplina.

Nessa discussão, sobre se Tropa de Elite é ou não um filme fascista, não poderemos, é claro, chegar a uma opinião comum. Mas uma coisa me pareceu evidente nessa história toda. Ficou claro, pra quem quer que seja, que independentemente do filme ser ou não fascista, a nossa classe média o é. Não por terem aplaudido as cenas de tortura e agressão durante o filme.Os universitários eram pintados com uma aura de arrogância tamanha que até eu ficava com raiva daquele loirinho de cabelo encaracolado. Matias foi "meu herói" quando entrou naquela passeata e bateu nele. Mas por tudo o que se seguiu: ver crianças de 11 anos e até mesmo cantando "subir a favela e deixar corpo no chão" ou afirmando que todo favelado é bandido, enquanto imita os gestos do alucinado do Capitão Nascimento, sob os risos de "olha que bonitinho" de pais que só possuem um cerébro por acaso, isso sim é ultrajante. Fantasias de Carnaval do BOPE para crianças e outras mazelas do tipo, isso sim é revelador.
O que me preocupa de fato, é que enquanto aqueles que, como nós, usam um pouco dos seus miolos para pensar sobre o filme, a grande maioria simplismente cria e incorpora mais um herói, seja o Capitão Nascimento, o pai, o Matias, o filho, o Neto o espírito santo (depois de morto, é claro) ou o Baiano, o judas.

De onde você vem?