Estava eu lendo uma matéria de Ricardo Bonalume Neto, da Folha Online, sobre uma descoberta matemática realizada por um “excêntrico”, em suas palavras. E me deparei com essa passagem:
“Mas não foi esse o único fato que demonstrou mais uma vez como a ciência é uma atividade humana, sujeita aos mesmos caprichos de outras, como o esporte, a política ou a arte.”
Por “caprichos”, entende-se picuinhas, ciumeira, briga por espaço nos holofotes, rasteiras desleais e sacanagens das bravas. A conhecida disputa pelo poder. Mas não só isso: a frase quer dizer, mais profundamente, que “relações de força” estão em curso, que representações da realidade digladiam-se ferozmente numa arena que nunca é neutra.
Que a ciência está sujeita a esses caprichos, trata-se de um lugar comum, hoje. É lugar comum até mesmo em jornais e revistas, material de divulgação e livros didáticos. Já era lugar comum no meio acadêmico ontem. Anteontem, era uma concepção “nova”. Trata-se de um axioma de nossa época. Não dá pra escapar. Mas...
Não parece haver muita precisão nesse discurso. “Mesmos caprichos”, como saber se são realmente os mesmos? Os tais “caprichos” estão infiltrados no mesmo nível em práticas tão díspares? Não há “caprichos” diferentes para práticas diferentes?
Mais claramente: as “relações de força” ocorrem da mesma maneira e em mesmo grau tanto na ciência quanto em todas as outras atividades humanas? Acho que a pergunta, feita dessa forma, impele qualquer acadêmico esperto a perceber que é preciso analisar com muito critério as diferentes formas de manifestação do jogo do poder e das relações de força. Mas não é isso que ocorre! Não é isso o que eu ouço quando esses axiomas pós-modernos são jogados em meus ouvidos! (Um outro é aquele do “a ciência é uma prática mundana como qualquer outra e não possui um status epistemológico privilegiado”).
Então sobra mesmo esse lugar comum. O que tem uma implicação: se todas as atividades humanas estão sujeitas à disputa de poder, às relações de força, de maneira e nível semelhantes, então há uma “teoria universal do poder e das forças humanas”, ainda que não totalmente presente como uma verdadeira teoria. Portanto, essa gente que condena a busca da ciência por proposições universais ou gerais acerca da natureza como mera fantasia ou ingenuidade está, no mínimo, praticando a incoerência ao apelar para o axioma do jogo do poder.
Um comentário:
Primeiro eu tive que consultar um dicionário pra lembrar o que diabos significa "axioma".
Refrescada a memória, digo: belo texto!
As vezes não dá para entender como certas questões não são levadas a diante. Essa que vc coloca, por exemplo.
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