22 de maio de 2007

Poesia e morte, ontem e hoje

A morte em dois momentos.

Primeiro, por Christian Hofmann von Hofmannswaldau, poeta do século XVII. Poesia citada em A Solidão dos Moribundos, do sociólogo Norbert Elias.

Transitoriedade da beleza

Por fim a morte pálida com sua mão gelada
Com o tempo acariciará teus seios;
O belo coral de teus lábios empalidecerá
A neve de teus mornos ombros será fria areia
O doce piscar de teus olhos / o vigor de tua mão
Por quem caem / cedo desaparecerão
Teu cabelo / que agora tem o tom do ouro
Os anos farão cair, uma comum madeixa
Teu bem formado pé / a graça de teus movimentos
Serão em parte pó / em parte nada e vazio.
Então ninguém mais cultuará teu esplendor agora divino
Isso e mais que isso por fim terá passado
Só teu coração todo o tempo durará
Porque de diamante o fez a Natureza

Preocupado com as diferenças históricas relacionadas à abordagem da morte, Elias comenta:

"Falta aqui o tom solene ou sentimental mais tarde muitas vezes associado à lembrança da morte e da sepultura. [...] As pessoas do círculo do poeta deve ter se divertido com uma brincadeira que facilmente escapa a um leitor moderno. Hofmannswaldau diz à sua relutante amada que sua beleza desaparecerá na sepultura, seus lábios de coral, seus ombros de neve, seus olhos insinuantes, todo seu corpo decairá - exceto seu coração: ele é duro como diamante, pois ela não dá ouvidos a seus apelos. No registro dos sentimentos contemporâneos dificilmente encontraremos qualquer coisa que corresponda a essa mistura de funéreo e irreverente, essa descrição detalhada da decomposição humana como manobra de sedução."

Agora, a música Gravedigger, de Dave Matthews.

Cyrus Jones 1810 - 1913
Made his great grandchildren believe
You could live to 103
103 is forever when you’re just a little kid
So, Cyrus Jones lived forever

Gravedigger
When you dig my grave
Could you make it shallow
So that I can feel the rain

Muriel Stonewall 1903 - 1954
She lost both of her babies in the second great war
Now, you should never have to watch as your only children are lowered in the ground
I mean, you should never have to bury your own babies

Gravedigger
When you dig my grave
Could you make it shallow
So that I can feel the rain

Ring around the rosey
Pocket full of posey
Ashes to ashes
We all fall down

Gravedigger
When you dig my grave
Could you make it shallow
So that I can feel the rain

Little Mikey Carson '67 - '75
He rode his bike like the devil until the day he died
When he grows up he wants to be Mr. Vertigo on the flying trapeze
Oh, 1940 - 1992

Gravedigger
When you dig my grave
could you make it shallow
So that I can feel the rain

Duas atitudes perante a morte. A primeira a trata com naturalidade e irreverência. A segunda, com o peso e dramaticidade dignas da maior tragédia que pode nos abater. Sinal dos tempos. Há apenas alguns séculos, a morte presente em todos os lugares, a todo momento. Hoje, o distanciamento cada vez maior do fim. "Nunca antes na história da humanidade", afirma Elias, "foram os moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de morte à sepultura".

"Você não deveria enterrar suas crianças", diz Matthews, sobre a mãe que perdeu seus dois filhos na Segunda Guerra. Hoje, pelos menos nos países desenvolvidos, as guerras viraram exceção. E a morte dos filhos, antes dos pais, especialmente na infância, é vista como algo anti-natural. Esquecemos que, durante a maior parte da história da nossa espécie, vimos grande parte de nossas frágeis crianças serem varridas pelo destino. Somente no nosso tempo, com todas as precauções tomadas contra a morte, podemos nos dar conta da infinita tragédia de uma lápide como "Michael Carson 1967 - 1975".

Aliás, é sobre o "Little Mikey Carson" que surge a melhor parte da poesia de Dave Matthews. Em vez de falar no passado, coloca os desejos do pequeno Carson no presente: "quando ele crescer, quer ser o Mr. Vertigo no trapézio voador". E, como que para lembrar a inevitabilidade da morte de tudo e de todos, incluindo a do próprio menino, fecha o verso: "Oh, 1940 - 1992". Até os heróis, Mr. Vertigo, Carl Sagan, Ayrton Senna, morrem.

A morte, um tema freqüente nas composições de Dave Matthews, é encarada por muitos de nós, hoje, com terror e ansiedade. A maioria ainda corre, apavorada, para as colinas da religião. Os que ficam no pântano da realidade sofrem a tragédia. É disso que nascem a arte mais profunda e o questionamento filosófico mais intrigante.

Um comentário:

Vanessa disse...

Certeza, cara branca! Vc é um (em especial) que ultimamente vem tratando essa questão com extremo vigor...

Realmente é muito complicado se falar em morte.
Irrevogavelmente... essa questão tomou tão fortemente meus pensamentos, que não consigo (como antes) curtir o presente sem pensar na mesma. Quão frágil é nosso corpo!

Agora eu, enquanto mãe, só consigo ver a "naturalidade na morte" no papel de historiadora, pois não pretendo levar meus filhos à sepultura...Ai que difícil esse tema

De onde você vem?